terça-feira, 26 de dezembro de 2017

ROBERTO CARLOS, JOVEM GUARDA, ACRE, DITAM...

Uma conversa com Luiz Felipe Jardim


Um Rei é pessoa que acumula privilégios. E o maior de todos é realmente o de ser rei. 

Se acumula, o Rei também distribui privilégios. Espalhando guerras ou canções, espada ou emoções, tudo de acordo com a natureza de seu reino e espírito de seu reinado.

Como não pode estar em todos os lugares ao mesmo tempo, e nem percorrer muito tempo tantos lugares de um reino tão grande como o do Brasil, o Rei coroa com o privilégio eterno da memória os lugares onde esteve. Os lugares por onde passou.

E o Rei esteve aqui...

Em meados de 1973, naqueles dias do ano em que – durante dias e noites – os dias e as noites são os mais quentes, (eventualmente, também os mais frios), Roberto Carlos apareceu para os acreanos.

Percorria o Brasil numa grande turnê, e quase como que de paraquedas por aqui aportou...

A seguir, você verá é uma entrevista que o Alma Acreana fez com quem, por lá estar, foi viu e... sobreviveu.
AA- Para você, quem são Jovem Guarda e Roberto Carlos?

LFJ- Antes de tudo, é importante lembrar que certas pessoas, por sua importância social, deixam de ser somente elas e passam a ser elas e muito mais. Essas pessoas representam épocas, são parâmetros para a História, Economia etc. Roberto Carlos é umas dessas pessoas. Ou seja, ele é o que ele é independente do que as pessoas acham que ele seja; mas é simultaneamente, tudo aquilo que as pessoas pensam, acham e dizem que ele é.  Portanto, RC é um ser plural: ele é ele mesmo, e muito mais. Aliás, muito mais do que ele mesmo rs.

AA- Em que aspecto pode RC ser parâmetro para a Economia?

LFJ- Veja, RC adentra o cenário cultural brasileiro, no momento em que, nos governos JK, Jânio, Jango e posteriores, a indústria automobilística brasileira se delineava, se enraizava e se consolidava como ponta de lança da economia nacional. Roberto Carlos é um dos arautos desse processo com o seu 'calhambeque', e também com sua Jovem Guarda. Ambos cantavam os carrões, difundindo um fascínio, que se convertia em vontade coletiva, que se convertia em moda e consumo. “Entrei na Rua Augusta à 120 por hr”... “papai me empresta seu carro”... “meu Mustang cor de sangue” são ícones da JG que ilustram bem esse momento.

O sucesso da música Calhambeque trouxe para o mercado uma grif de roupas para rapazes e moças também chamada Calhambeque. Suas calças para rapazes eram bem apertadas, e as saias Calhambeque eram Minissaias. Por que isso?

Em 1961 o governo de Cuba se mudou de mala e cuia para o outro lado frio da Guerra Fria, o lado Soviético. Na mala e cuia de Cuba estava, sua enorme produção de algodão, que até então abastecia parte significativa da indústria têxtil ocidental. Resultado: faltou algodão para todos os do lado da OTAN, principalmente, para o parque têxtil inglês.

Além de redesenhar e redimensionar as áreas de produção de algodão pelo mundo – onde até o nordeste brasileiro tirou uma casquinha revitalizando velhos e moribundos algodoais – outras duas linhas de emergência foram adotadas para superar a crise: intensificar pesquisas e produção de fios sintéticos, e além dos cintos, apertar as calças e diminuir o tamanho das saias do planeta. Lembra da camisa Volta ao Mundo? Da camisa Banllon? Das calças de Tergal? Eram todas marcas de fios inteiramente sintéticos que foram moda no planeta.

É nesse contexto que surge a minissaia. E embora ela tenha promovido uma grande revolução pelo mundo afora, nasceu de uma reação, de uma quase contra-revolução capitalista rsrs. Nasceu da necessidade imposta por uma conjuntura de mercado.

No Brasil, RC e JG estão imersos até o pescoço nesses primeiros 15 minutos de fama da sociedade de consumo brasileira.

Logo depois, já num segundo tempo e na prorrogação da Jovem Guarda, a indústria têxtil ocidental, abastecida e recuperada, vai à forra e aumenta o tamanho das saias e calças do mundo.

Os hippies usavam muita roupa de algodão, como aquelas batas imensas por exemplo.

Quando RC veio ao Acre, em 1973 já estava desvestido das apertadas calças Calhambeque do seu filme RC Em Ritmo de Aventura, de 1967. Usava, agora, calças bem mais largas, de enormes bocas-de-sino e de tipo toureiro, que iam até o umbigo. Ou seja, muito pano pras mangas para compensar as perdas recentes da indústria têxtil ocidental capitalista.

AA- Muitas análises indicam que a JG foi um movimento da juventude alienada da época. Da juventude que apoiava a ditadura militar e que era contra as revoluções, enfim, que a Jovem Guarda era um movimento de direita, no mínimo, alienado e infantil. O que você acha disso?

LFJ- O Brasil era um país essencialmente rural, mais de 70% de sua população estava no campo. Além disso, era iletrado e tinha taxa de natalidade de quase 6 filhos por mulher em idade fértil. Mas era um pais que mudava. E bem rápido, assim como Brasília nascendo. Havia intensa migração interna, intenso movimento. Aqui e no mundo todo.  Aliás, o mundo estava de mudanças e mudavam pessoas e ideias, por todo o mundo.

RC sai do interior do Espírito Santo e vai para o Rio.  Nunca lera Sartre, Beauvoir ou Jean Genet. Nem Marx, Lenin ou Trotsky. Quem poderia querer que ele fosse um líder revolucionário marxista ou um militante existencialista? Mesmo assim, em diversas medidas, ele contribuiu muito mais para certas mudanças significativas do que muitos discursos e práticas ditas revolucionárias e de esquerda da época. Lembre-se que o uso da guitarra elétrica pelos músicos brasileiros foi duramente criticado e até mesmo severamente atacado por segmentos importantes da nascente MPB, com direito a passeata e tudo o mais, promovida por Elis Regina em SP em 1965, (quem estava à direita e à esquerda nesta questão?). Lembre-se que, de certa forma, a Tropicália só foi possível depois que Caetano Veloso, alertado por Bethânia, sua irmã, compreendeu a importância da JG e a ela se aliou.

Esse maniqueísmo que nos diz que o comportamento da esquerda é assim e o da direita assado, nos impede de compreender coisas simples quando nos impede de ver as coisas com  naturalidade.

Muitas das mudanças que o mundo precisava fazer eram pontuais, não eram necessariamente as mesmas em todos os lugares. Para as mulheres de certos lugares do mundo, o uso de sutiãs poderia ser tão revolucionário como atirá-los em fogueiras em outros. Para os homens, usar cabelos compridos e roupas coloridas no nordeste brasileiro ou no sul italiano, poderia ter a mesma importância ou promover mais mudanças que inúmeras passeatas comunistas em Paris. O Mundo estava de mudanças, e mudava sua fisionomia de acordo com a fisionomia que mudava em cada ponto seu.  Assumindo diversos rostos, diversas formas, diversas expressões de si próprio...

AA- E a infantilidade...

LFJ- Não vejo isso de 'infantilidade' como algo necessariamente negativo. Até vejo como bons olhos esse lado da JG. Uma das qualidades do ser humano é a de ser capaz de levar para a vida adulta características próprias da infância, como a curiosidade, o fascínio pela novidade por exemplo. A isso chamam de neotenia que é algo como a permanência de caracteres infantis em animais sexualmente maduros. Essa característica foi fundamental para o ser humano quando esteve prestes a se extinguir em diversos momentos da Pré História.

A curiosidade, a busca pelo novo, pelo diferente também produz cultura e ciência. O que fazem ator e espectador senão ‘brincar de mentirinha’ do tipo ‘eu finjo que sou e você finge que acredita’? O que faz o milionário jogador de futebol senão ‘brincar de bola’? O que faz o cientista senão ‘olhar nas fendas’ (nas brechas, diria o acreano) da realidade buscando realidades nuas, ocultas ou semiocultas?...

Naquele momento da JG, a juventude do mundo reivindicava ferozmente o direito de ser jovem por mais tempo. Até então em quase todas as sociedades do mundo e em todos os tempos, a passagem da infância para a vida adulta acontecia muito rapidamente. As pessoas se casavam cedo e assumiam papéis de adulto muito cedo porque a mensagem biológica do crescei e multiplicai-vos incrustada no DNA é poderosíssima. Foi essa mensagem que garantiu a sobrevivência da espécie humana adaptando-a a todo o planeta.

Após a chamada Revolução Industrial, as coisas tenderam a mudar. Com o prolongamento da expectativa de vida e o desenvolvimento das ciências médicas, mais remédios e vacinas, etc, as pessoas já não precisaram ter tantos filhos e nem casar tão cedo para ter garantida a reprodução da espécie. Como o número de filhos por casal diminuiu, o homem fez um arranjo na natureza promovendo um prolongamento artificial da infância. Os filhos, cada vez menos, ficavam cada vez mais tempo em casa sob os cuidados dos pais, preparando-se para a vida de adulto. Isto era novo, nunca houvera acontecido na história da humanidade.

Foi então que, na segunda metade do século passado, houve uma ‘explosão de juventude’ no mundo. Nessa explosão os jovens ‘inventaram’ o Rock; com o Rock reinventaram o jeito de fazer música; reinventaram os modos de ouvi-la e dançá-la, e, principalmente, de cantá-la. Cantavam como que com um grito de quem entra em cena aos gritos, como os bebês humanos entram na vida.  Assim os jovens reinventaram a ‘juventude’ e trouxeram novos sons, tons e cores à fisionomia da humanidade. Criando música própria, literatura própria, vestuário próprio etc. E tudo mais de acordo com sua fisionomia, mais de acordo com as novidades que a novidade do ‘prolongamento da infância e adolescência’ podia propiciar.

Os ‘novos jovens’, que já não eram crianças e ainda não eram adultos, gritavam pelo direito de não serem crianças nem adultos, com direito às naturais inconsequências (entrei na R Augusta a 120 ph); à inevitável superficialidade (...que eu não ligo para nada); aventuras (vinha voando no meu carro); divertimento (olha o Brucutu)... ah, e namoro mais livre, já que não havia casamento para agora (casamento, enfim, não é papo pra mim), e ninguém é de ferro. rsrs

AA- E o Acre, mudava também?

LFJ- Claro, claro que sim, e com uma criatividade (desculpe a redundância) bem original.

O Acre fazia-se Estado, havia intensos debates.  Muito calor na vida política; voltavam para cá os primeiros acreanos médicos (Mário Maia), advogados (Lourival Marques, Jersey Nunes), engenheiros, arquitetos (Fernando Castro), sociólogos (Hélio Kury)... O próprio primeiro governador, José Augusto estudara Filosofia no RJ. Essas pessoas teriam importância grande na construção da fisionomia de nosso espírito coletivo. Além delas, chegavam outras pessoas que seriam relevantes naqueles anos e em posteriores, como Aderbal Maximiniano, Abrantes Guedes, Laélia Alcântara, Dom Giocondo, Antônio Anelli, Florentina Esteves e muito mais. Essas pessoas traziam, além de si e de sua jovialidade, ideias, livros, discos, novidades enfim, que alimentavam e realimentavam o panorama de mudanças. Essa fermentação de ideias e cristalização de possibilidades foi o combustível que produziu a FADA (Faculdade de Direito do Acre), que resultou na UFAC.

Se aqui chegavam, daqui também saiam pessoas que voltariam mais tarde e influenciariam sobremaneira as artes, jornalismo, ciência sociais, etc. Gente como Terry Aquino, Elson Martins, Kleber Barros, Robson Braga, Oscenir e Piri Fecury etc. Muitas dessas pessoas, antes de se formarem,  vinham passar férias e traziam livros, discos, roupas da moda, novos passos de dança, cortes de cabelo... Maneiras novas de ver e estar no mundo.

Ao seu tempo, a JG cumpriu muito bem com uma de suas funções, que era a de estimular o fluxo de novidades, ampliar a flexibilização das mentalidades dos interiores do Brasil, preparando-as para as novidades do consumo. Junto com a JG vinha um pacote de vontade de consumo que incluía desde vestuário até eletrodoméstico; desde disco de vinil até poltronas e sofás. Foi aí que a enceradeira elétrica substituiu o escovão colonial, e o fogão a gás o pré- histórico fogão a lenha. O imaginário que a JG trazia e suscitava, impulsionava esse tipo de modernização, promovendo flexibilidade nas mentalidades do Brasil rural, do Brasil do interior... Não se esqueça que em 1966 foi criado o JUVENTUS aqui. O nome diz e explica muita coisa.

AA- Tudo muito paroquial...

LFJ- Sim, sim, mas um paroquial sui generis. Porque éramos os atores das invenções e reinvenções. Éramos assim como um time de futebol que não tem nenhum dos melhores jogadores do campeonato, porém com conjunto e volume de jogo, que estava ao nível dos times onde estavam os melhores jogadores.

Não tínhamos televisão nem instantaneidade nos contatos com o mundo lá fora, (a não ser na Radional e no Zé Pinho rsrs), tendíamos a nos fazer mais próximos de como nos víamos, e nos fazíamos mais parecidos com o que éramos realmente...

E éramos pessoas muito legais, divertidas, curiosas, amáveis, receptivas, inteligentes, criativas, modéstia à parte. Por isso fizemos aqui uma Jovem Guarda de responsa. Embalados por conjuntos musicais compostos por gente talentosíssima como Edu e Elísio dos Bárbaros, como Roberto Galo e Roberval dos Mugs. Era realmente um privilégio ouvir essas pessoas nos shows e bailes e tê-las como colegas de sala de aula, como parceiros nas serenatas de adolescentes.  Éramos amigos dos nossos ídolos como Sônia Mubarac, Dadão, Dora, Carlitinho. A gente não só via o Dadão dar shows de bola no Estadium, mas, eventualmente, poderia dar-lhe um chagão no campo de pelada ali ao lado da catedral e ao mesmo tempo, acenar para a Sônia dos Bárbaros que estava cantando com o Marcelo dos Mugs na calçada do outro lado da rua. Isso era realmente fantástico.

E é exatamente por ser tão paroquial que contêm todos os elementos de universalidade possíveis. E coisas assim aconteciam não só aqui, mas em uma quantidade enorme de cidades do Brasil e do mundo.

AA- Bem, chegamos ao momento em que “os microfones estão à sua disposição para as suas considerações finais...” mas antes: gostaria que isso tudo se repetisse?

LFJ- Ah não, isso não, não sou saudosista. Gosto de História por que com ela se pode dialogar com o futuro. Não acho que o objetivo da História seja o resgate do passado, mas algo muito mais ficcional. A História é um instrumental que junto com a física, astrofísica, biologia, biotecnologia etc., etc., levará a humanidade às estrelas... Estamos nos aproximando dos primórdios da ante proto pré história desse processo. Mas daqui já dá para perceber que quando atingimos certo nível de entendimento sobre alguns pontos do passado, nos livramos do peso que eles podem representar para as libertações que a humanidade precisa realizar. Contraditoriamente, quanto mais amamos, conhecemos e entendemos o passado, mais dele nos livramos. Mais livres nos tornamos.  E quanto mais livres ficamos mais ampliamos o sentido de humanidade que existe em nós e que é obrigação de cada ser humano cultivar, nutrir e... curtir, que ninguém é de ferro. E sobre curtição, a Jovem Guarda dá aulas... Não só de História, mas para a História.

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