terça-feira, 12 de dezembro de 2017

KANARÔ: ENCANTO, SAUDADE E LUTA

Isaac Melo 

O espetáculo teatral Kanarô, em sua primeira temporada, ocorreu em quatro apresentações no mês de novembro de 2017, no Teatro de Arena do SESC, em Rio Branco, Acre. As impressões que aqui vão não são de um crítico teatral, mas de um espectador. A peça é um mergulho no universo cultural e místico indígena, mais especificamente, Yawanawá (o povo da queixada), tendo como referência o mito Kanarô. É Mirini quem nos conduz nesse universo de encanto, magia, luta e transformação.

O espetáculo se inicia na antessala do teatro, onde todos são convidados a tirar os sapatos. O gesto de entrar descalços no teatro é muito significativo, sobretudo para nós amazônidas acreanos. Nos seringais e cidades do interior era falta de educação entrar calçado nas casas. Botas, sandálias, sapatos, etc. todos ficavam do lado de fora, ao pé da escada ou à entrada da porta. Hoje, sobretudo nas cidades maiores, esse costume tem-se esmaecido. Despir os pés é preparar os sentidos para ir ao encontro do outro. É sentir e caminhar em sintonia. Os pés descalços tornam todos aptos a sentir a mesma maciez ou a rigidez do chão, assim como os espinhos ou a poesia suave das folhas. A arte, ao nos despir os pés, despe-nos também a face e, assim, ainda que por alguns instantes, veem-se cair por terra todas as nossas máscaras sociais.

Já todos descalços, uma cuia de garapa (caldo de cana) passa de mão em mão para ser degustada, assim como, em certas aldeias, os indígenas bebem a caiçuma, enquanto dançam o Mariri. É o respeito, é o diálogo, é a união de todos que partilham a mesma cuia, o mesmo espírito. Aliás, é isso que nos remete o nome Yawa. A queixada é forte porque anda sempre em bando. Em bando são indomáveis. A força é a unidade do grupo.

O percurso que se faz da antessala até as cadeiras do teatro nos remete ao sentido de caminhar por um varadouro ou caminhar pela mata. E sentimos o chiado das folhas a beijar nossos pés, o perfume das matas, das plantas, que emana do incenso, tudo embalado pela música dos barrancos de seringal de Antônio Pedro e pela voz Yawanawá a narrar a própria história. Cores, cheiros, sons, sensações e lembranças nos percorrem. E o rio Acre emblemático e interpelador ao fundo.

Mirini vem do alto, porque a jornada é antes de tudo espiritual. É de encontro e reencontro. Na sua caminhada, caminha também o seu povo.  Vem do rio e pelo rio renasce. Aliás, o rio é muito representativo na peça inteira. Não só porque o rio nos lembra da fluidez da vida, da existência, ao mesmo tempo que se transforma, sem deixar de ser o que é, transforma também tudo às suas margens. Mas porque é também um grande elemento agregador dos povos amazônicos. Grande parte nasce nos altiplanos andinos e corta todo o vale até alcançar o oceano atlântico. Quantas vidas, quantas culturas, quantos povos vivem dele e às margens dele há séculos. O espírito do rio no espírito de Mirini.

Um dia a paz dos Yawa fora interrompida. E tiveram que partir, e cruzar o grande rio. E kapatauã, o grande jacaré, se dispôs a levá-los até a outra margem, com a condição que, durante o percurso, não o alimentassem com a carne de seu parente (outro jacaré). Mas, na falta de outro alimento, um dos grupos dos Yawa tiveram que dar carne do parente. Revoltado, Kapatauã afunda, impedindo-os de concluir a travessia. Dessa forma, parte dos Yawa separam-se sem poder cruzar até a outra margem. É quando surge Kanarô, o majestoso pássaro (arara) que conduz notícias dos Yawa de um lado para o outro. Kanarô é a saudade. A saudade dos que ficaram, dos que não estão, a não ser no espírito, no sentimento, na lembrança.

O canto, a dança, o cocar, a pintura, assinalam que a menina é agora a Yawa Mirini, em sintonia com as forças naturais e espirituais. Mergulha na sua ancestralidade e compreende todo o processo de afirmação e de identidade dos Yawanawás. E com o fogo, a lamparina, quer dizer, iluminada, pode então clarear o caminho do seu povo. Mirini é muito mais que Mirini. Mirini é o povo Yawanawá em sua secular caminhada pelas matas amazônicas, desde o tempo em que todas as coisas eram gente, em que o céu e a terra era uma coisa só até os tempos conturbados de hoje, do ronco das motosserras e dos empréstimos dos bancos internacionais.
Kanarô é uma peça para sentir. É um deleite para os sentidos. Não há como não se empolgar com a música executada na hora. A melodia da flauta, nascendo da penumbra, nos chega como um abraço, que pouco a pouco nos envolve completamente. E essa simbiose de música com as luzes coloridas nos conduzem a uma miração. A miração da arte. E assim, cada apresentação, ainda que se trate da mesma peça, torna-se única, pois a música é sempre outra, sem deixar de ser ela mesma.

Mas Kanarô não é uma peça ingênua, como ingenuizam a cultura indígena certos trabalhos ditos artísticos, com seus estereótipos e fetiches xamânico-mercantis. O olhar crítico alcança seu ápice no poema de Nani Yawanawá “Tudo está diferente”, acompanhada de uma sequência de imagens contrastantes do Acre e da Amazônia, que nos interpelam e nos sacodem, e questionam o passado, o presente e o futuro, ao pôr em cheque o modelo político e econômico que aos povos amazônicos têm sido empurrados goela abaixo.

Kanarô é essa possibilidade de adentrar no universo e na cultura indígena sem agredi-la, buscando o máximo se distanciar dos estereótipos e clichês. É o respeito pelo outro, que não se quer apenas encenar, mas compartilhar experiências e olhares, criar laços de afinidade, romper barreiras. Na beleza das nossas diferenças, fazemos todos parte da mesma aldeia. A ameaça aos povos indígenas é uma ameaça a todos nós. E mais do que nunca se faz preciso nos indigenizar, isto é, voltar a unidade com a natureza e o cosmo, sentir-nos terra, água, fogo, estrelas, árvores, rios... sentir-nos integrados com tudo e com todos.

Kanarô, com patrocínio do Banco da Amazônia, teve a direção e a música sob a responsabilidade de João Veras, um dos nomes mais importantes da/para a arte nesses últimos tempos no Acre, por sua sensibilidade e capacidade intelectual, demonstrado por inúmeros trabalhos musicais, literários e acadêmicos, como a obra magistral “Seringalidade” (2017). Mirini foi interpretada pela atriz Dani Mirini. Além da beleza física que lhe é peculiar, com seus traços marcantes, seus cabelos longos e negros, seus olhos penetrantes, ela carregou sobre si toda a força da mulher Yawa. Não só interpretou, mas viveu cada passo de sua personagem. Era preciso fôlego, força e domínio para executar a performance no tecido, por exemplo. E assim foi, como também teve competência na voz, ao executar os cantos e falas Yawanawá. Mais uma vez, entre tantas outras, demonstrou a sua competência, domínio e presença de palco. A produção ficou a cargo de Maria Rita, que há anos dedica-se ao teatro, e merece toda a nossa reverência. Demonstrou que o teatro pulsa cada vez mais forte nela. Luiz Rabicó cuidou da iluminação, permitindo que o espetáculo fosse contemplado em todo o seu esplendor. Tudo isso fez com a peça tivesse beleza, leveza, magia e argúcia.
Casa Vivarte - Rio Branco-AC

A peça é uma produção do Grupo Experimental de Teatro Vivarte, que foi criado em 1998, a partir da experiência da professora e também atriz Maria Rita com alunos do ensino fundamental. “A partir daí, Maria Rita deu início a sua trajetória no teatro, através da qual conheceu e se uniu aos demais integrantes. Iniciou assim a trajetória artística do grupo, que hoje acumula 19 anos de experiência, entre o palco e a rua”. E é um dos grupos mais importantes no cenário atual do teatro acreano e o único que conta com um espaço próprio, a Casa Vivarte, inaugurada em 2009, onde ocorrem ensaios, oficinas abertas à comunidade, estudos, laboratórios e pesquisas.
Uma apresentação do Circo Sirin Sirin.

Ao longo desses anos, o Vivarte já acumula mais de 13 espetáculos, muitos dos quais, premiados, como os projetos “Circo Sirin Sirin”, de 2014; “Encantoria”, de 2011, “O Casamento da Filha de Mapinguari”, de 2009, que receberam o Prêmio Funarte Artes Cênicas na Rua. Ainda receberam o Prêmio Matias de Culturas Populares, também com o projeto “O Casamento da Filha de Mapinguari” (2010); o Prêmio Caravana Funarte / Petrobras de Circulação Nacional 2006, com a circulação dos espetáculos “Manoela e o Boto” e “Brincando com Cordel” em municípios dos estados do Acre e Rondônia (2006); e o Prêmio Funarte de Incentivo à Produção Artística, pelo projeto “Montagem da Peça Contatos Amazônicos em Terceiro Grau” (2000). 

Apesar de todos os percalços de fazer teatro na periferia da periferia do Brasil e da Amazônia, com ínfimos apoios e recursos financeiros, o Vivarte tem sido a resistência e a utopia possível que alimenta a chama da arte e da humanidade. E a cada espetáculo, os sonhos se renovam e o Acre torna-se menos acre, um pouco doce, uma doçura de infância. Viva a arte viva. Vivarte!

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