sexta-feira, 13 de outubro de 2017

JOANA

Gerson Albuquerque


“Eu mato minha filha e me mato”, pensou Joana Maria e Paiva olhando para o vai-e-vem de hóspedes que entravam e saíam do Hotel Chuí, em meio à umidade e ao calor do inverno amazônico.

Engravidara de um fantasma e, revelada por uma aparição na noite anterior, sabia que se tratava de uma menina.

“Fantasma de três pernas”. Comentou zombeteira, uma amiga de escola. Mas, Joana não lhe deu nenhuma atenção. Sempre ouvira que gente como ela somente tinha direito a não ter direitos e, em contendas com sua índole, passara a assumir essa sentença envolta em um tom de indignada ironia.

Nem bem completara dezesseis anos e não poderia voltar pra casa dos pais: jamais acreditariam na fantástica história de uma virgem engravidada.

No limiar de seu ocaso, permaneceu na rua durante toda a noite e, nas proximidades do quartel da polícia, ouviu vozes acompanhando as sombras que movimentavam a Praça Rodrigues Alves na alta madrugada. Às cinco horas, resoluta e despindo-se de todo o pudor, desceu a Avenida Getúlio Vargas em direção ao Segundo Distrito. No cruzamento com a Epaminondas Jácome, evitou olhar para o mercado municipal, na Praça da Bandeira, e se dirigiu à Juscelino Kubitschek, que unia os dois distritos da cidade, subindo e equilibrando-se no passeio do lado esquerdo da ponte metálica.

Com a intenção de aproveitar a correnteza de um rio que se alimenta de suas margens, deixou-se cair com os olhos firmes nas águas inquietas, o corpo inerte no intransitivo daqueles segundos feitos de espaço. Um corpo rasgado de lembranças, cicatrizes da vida inteira.

Nem bem os raios da luz solar alcançavam as cumeeiras das velhas casas da Rua África, flutuou em suave performance, desaparecendo entre as espumas, balseiros e terras caídas.


ALBUQUERQUE, Gerson. Eu panfleto tu panfletas eles rasgam os panfletos. Rio Branco, 2017. (panfleto literário)

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