quarta-feira, 21 de setembro de 2016

DE FORTALEZA À TRAIRÍ É UM PULO!

Eliana Ferreira de Castela

            Para quem nasceu no Acre, ser filha e neta de cearenses é tornar-se guardiã para a entrada de novos conterrâneos dos ancestrais, e porque não de todos os nordestinos? O papel de dar a eles as boas vindas tem rendido amizades estreitas. É como receber os parentes que se perderam na distância do tempo e no espaço.

            No Ceará também as portas estiveram abertas, a começar pela calorosa acolhida em Fortaleza, na casa de Natasha, João e seu filho Tomás, este, gentilmente nos cedeu o seu quarto. Deles recebemos carinho, atenção, a chave da casa, para ter o conforto de sair e chegar a qualquer hora e acordar a hora que bem entendesse. Ganhamos até presentes - uma pimenta saborosa e um livro muito especial do qual falarei no próximo capítulo.  As pessoas que nos hospedam, em tantas viagens, sempre nos dão presentes, já ganhamos até dinheiro em espécie.

Com a casa de Natasha a nossa disposição, usufruímos de todos os espaços, o quarto para o descanso etc., e tal; da sala aproveitamos, até mesmo para receber o querido amigo, professor e poeta, Stélio Torquato, que é parceiro de Jorge, no livro, “... e a gente brincava assim”, em vias de ser publicado. Stélio na companhia de sua querida Alexandra Rodrigues, só nós quatro, em menos de duas horas fizemos um grande encontro, com poemas, músicas, fotografias que registraram aquele curto tempo cheio de abraços, beijos e trocas de livros. Foi o primeiro encontro pessoal entre nós quatro. Hoje a internet oportuniza novos e bons amigos, o primeiro encontro é na verdade um reencontro.

Também fizemos bom uso da cozinha dos amigos João e Natasha, onde o Jorge fez, nos moldes de antigamente, apertando entre os dedos, para retirar a polpa, dois maravilhosos sucos e nunca antes experimentados por nós, de seriguela e umbu-cajá. Esta última fruta, eu nem conhecia. Garanto ao leitor que não é exagero a ênfase ao fruitivo sabor dos sucos.

Depois de instalados, rua, circular pela cidade, descobrir praças, monumentos, pessoas nos seus cotidianos e claro, as bancas de frutas. Em cada esquina um novo palato, novas formas e outras cores das frutas da região. Com tantas andanças era recomendável dar uma volta ao futuro - a praia do Futuro. E se não fosse a chuva a nos mandar para casa, teríamos comido o caranguejo do Chico.

            A acolhida continuou em outras cidades do Ceará. Nélia, cearense, foi morar no Acre e por lá estabelecemos uma boa amizade, a ponto de considerá-la amiga-irmã. Nélia me falou tantas vezes de sua irmã Adinari, que mesmo sem conhecê-la criamos um vínculo de amizade. Ambas assistentes sociais, em duas regiões carentes do país, uma na Amazônia e a outra no Nordeste. O exercício da profissão deu a Nélia e Adinari a oportunidade de conhecer a pobreza que tem características definidas na cor, sexo e condição social. Muitas vezes são gentes invisíveis na sociedade.

Conhecer Adinari estava escrito nas estrelas, nosso encontro foi caloroso, semelhante a encontrar velhos amigos. Ela nos levou para um fim de semana em Trairí, na casa da sua mãe, onde fomos recebidos com simplicidade e nobreza. Com redes para dormir, boa conversa e mesa farta, quando pudemos deliciar, o “melhor peixe no leite de coco, do mundo!”- nas palavras de Aline, filha de Adinari, neta da responsável pela iguaria – Madalena, a matriarca.

Mas o fim de semana foi além de Trairí. A viagem de carro de Fortaleza até lá, deu direito a passar em outras pequenas cidades e por menor que elas fossem Adinari abordava algumas peculiaridades do lugar -  histórias, lendas, belezas, projetos governamentais, indústrias, lagoas, praias que embelezam a paisagem e bobinas eólicas que mancham o belo visual das dunas, das lagoas e das praias, ao longo do horizonte. Logo na saída de Fortaleza passamos por Caucaia, cidade que tanto meu pai falava, mas apenas passamos.

No percurso entre Fortaleza e Trairí, um dos destaques foi a “Monstra”. De acordo com o mito, ainda pouco conhecido, ela se instalou no município de São Gonçalo do Amarante, ocupa uma boa dimensão de terra e bebe três vezes mais água, que toda a população de Fortaleza, em um mês. Ela é assustadora!

O mito da “Monstra” foi construído a partir da instalação da Companhia Siderúrgica do Pecém, empresa de capital misto, que tem como sócias, as empresas Sul Corena, Dongkuk Steel e a Posco, com a Companhia Vale. Sim, a Vale, aquela que também é culpada, juntamente com a empresa Samarco, pelo rompimento da barragem, na cidade de Mariana, no Estado de Minas Gerais, em novembro de 2015, que gerou morte, desabrigo de pessoas e destruição ambiental.

O mito foi construído em meio às contradições do capital. Se a região Nordeste tem o lamentável histórico da seca, como pode haver um alto investimento na região, destinando à siderurgia, um volume tão considerável de água para a produção de aço, destinado à exportação, quando as pessoas não têm água para produzir suas próprias comidas? Certamente alguém defenderá o projeto, considerando que, a balança comercial, a geração de emprego e outros elementos da economia de mercado, são fatores que explicam e justificam a manutenção da “Monstra”.

O banho de mar na praia de Flecheiras e nas lagoas que se formam ao longo da praia, transformou todos nós em crianças, completou o passeio em Trairí e fez nascer novos laços com os demais membros da família de Adinari e Nélia, destacando Aline e Davi, este, também filho de Adinari, ambos adolescentes, que interagiram conosco ao longo de toda a viagem, num clima muito amistoso.  

No Santuário de Padre Cícero, Samuel a nos socorrer 

            Fortaleza é a cidade natal do meu pai e o Theatro José de Alencar, que é uma das maiores referências da cidade, remete diretamente a ele. De sua vida, nós os filhos, soubemos apenas fragmentos. Marcou em nossas memórias as carências materiais e afetivas que ele viveu, bem como, o desejo de libertar-se da opressão familiar, com o sonho de ser ator. Fernando de Castela, como ele se chamava, quando ainda era garoto, chegou a despertar o interesse do ator e dramaturgo Procópio Ferreira, quando o artista esteve em turnê, em Fortaleza.

Procópio Ferreira chegou a ir a sua casa, para levá-lo junto com a trupe, mas a tia o escondeu, frustrando assim o seu plano de fuga. Embora ele não tenha realizado seu sonho, influenciou-nos fortemente a perceber que a arte, não se limita a imitar a vida e que a poesia promove mudanças. Mas, assim como, não fomos ao Maranhão em busca de prováveis heranças materiais, também não fomos à Fortaleza investigar a vida pessoal, do meu velho poeta. Fomos ao Ceará, pelos tantos cearenses que migraram para a Amazônia, na época da borracha, e pelos que continuam migrando até hoje, não apenas por causa da seca, mas pela mesma aridez política de eternamente.              
Theatro José de Alencar
Foto: Francisco Dandão, 2016

Mas o que tem fortaleza a ver com o Padre Cícero? No nosso caso, é o livro que nos foi presenteado, pelos amigos João e Natasha - A Cabeça do Santo, de autoria de Socorro Acioli. A escritora escreve sem ferir a religiosidade de quem quer que seja, mesmo abordando os que creem, os que não creem, os que fingem crer, para se aproveitar dos que precisam crer,  e outros temas mais. A leitura do livro foi excelente para preparar o terreno da visita ao santuário do Padre Cícero, na cidade do Juazeiro do Norte, além de orientar numa experiência particular que nos ocorreu, conforme relatado mais à frente.

Conhecer o Juazeiro do Norte para nós, nada teve a ver com uma religiosidade própria e sim, com a religiosidade de pessoas que depositam na imagem do Padre Cícero, a esperança de vencer as dificuldades da vida, a falta d’água, as doenças, a pobreza, a fome, a solidão… Muitos desses problemas poderiam ser solucionados, se não fossem os vícios políticos, o sistema cruel que atravessa séculos mantendo mazelas como as causadas pela seca no Nordeste.

Visitar os templos e santuários é visitar a realidade dos povos. A religiosidade popular é própria da humanidade. A busca do sagrado e a crença num ser divino é o que concede respostas para muitos povos. No entanto, a religião traz elementos doutrinários que podem levar ao distanciamento da religiosidade, enquanto manifestação cultural de um povo, mas esse é um território problemático, inadequado para ser abordado neste trabalho, que pretende apenas dizer as impressões da visita ao Horto santo do Juazeiro e como isso decorreu.

Estátua do Padre Cícero, Juazeiro do Norte
Foto: Oliveira de Castela, 2015
No ônibus, ao longo do trajeto que conduz à colina do Horto, de longe pode ser avistado parte do Santuário, de tão alta que é a construção. A estátua de Padre Cícero também é imensa, tem 27 metros de altura. O tamanho da estátua sugere o poder do santo para os devotos. É curioso chegar perto do cruzeiro, onde as velas acesas choram grossas lágrimas de cera, pelos pedidos almejados, concretizados e não realizados. Observar os ex-votos amontoados é como se estivéssemos a olhar um ambiente, após uma catástrofe sem sobreviventes, que juntamente com fotografias e outros objetos deixados, em meio ao apelo, dúvida e certeza do atendimento, sugere, contraditoriamente, um cenário de medo. Esse todo pôde ser observado desde o centro da cidade do Juazeiro do Norte até o Santuário.
            O horário em que fizemos a visita era por volta de meio dia, o sol estava tinindo, como costumamos dizer, o que nos impedia de olhar por muito tempo, para a estátua, branca e reluzente de doer nos olhos.

Terminamos a visita e descobrimos que o próximo ônibus que nos levaria do Santuário a estação do metrô demoraria muito. A distância era considerável, juntamente com o forte sol, não era nada recomendável a quem não estava lá em penitência descer aquela imensa colina. Como não havia táxis disponíveis, resolvemos arriscar e pedir uma carona.

Sem nenhuma cerimônia demos a mão para um carro. O motorista fez a gentileza de parar e se desculpar por não dar a carona, disse que estava indo na direção oposta. Desolados, mas atentos a outros carros ficamos no ponto do ônibus, qual não foi a nossa surpresa, quando após cerca de quinze minutos, o carro, ao qual o motorista se desculpara por não nos atender, parou convidando-nos a entrar. Disse que iria apenas “apanhar uma mulher” e então seguiria para nos levar à estação do metrô.

Depois descobrimos que a “mulher” que ele se referira era a mãe dele. Ela chegou ao seu destino e seguimos viagem com ele. O rapaz, que até então tinha se mantido calado, começou a falar do cotidiano, dando demonstrações de arrogância e individualismo, nada condizente com sua atitude, quando parou a primeira vez, para justificar-se por não nos atender, assim como haver retornado e oferecer a carona, como se fosse um compromisso próprio, e era. Fazendo um hiato no tom de sua fala até então, ele disse - nós temos a maior atenção com os peregrinos, tudo que pudemos fazer por eles, nós fazemos! 

A expressão dele provocou em mim um acesso de riso, quase incontrolável. Isso aliado ao medo que Jorge, meu companheiro, não se contivesse e revelasse que não éramos peregrinos e o rapaz tivesse a reação de nos deixar no meio do caminho.  Mas tanto Jorge, quanto eu, assumimos a postura certa, não revelamos que éramos apenas turistas, para evitar que acontecesse o ocorrido com Samuel, personagem do livro, A Cabeça do Santo, de Socorro Acioli, acima referido.

Samuel passou fome e sede, entre outras privações, ao longo da caminhada, saindo do Juazeiro do Norte, até Candeias, a fim de atender ao último pedido de sua mãe. Quase desfalecido, ele foi socorrido por uma família de peregrinos, que o deram de beber, amenizado o cansaço, quando então, ele revela não ser peregrino… Bem, o que aconteceu com Samuel, os curiosos terão que ler o livro e descobrir. O fato é que para nós, Samuel serviu de lição.

Leiam aqui as crônicas anteriores:
- Sétima: O Cariri que nos habita

2 comentários:

Ronaldo Rhusso disse...

Ah! O Ceará e seus mistérios, sincretismo... Dizem os cientistas que nosso cérebro necessita de muita água! Com tanta escassez, como a cabeça deles é tão grande? E essa gama de talentos que alegram o país inteiro numa demonstração de grande conteúdo cerebral? O Pe. Cícero, homem que foi muito inteligente e proclamou a si mesmo como santo também deu título a Lampião e quem contestaria tal autoridade? Difícil mesmo é ser tão hospitaleiro quanto o nordestino... E vamos viajando aos sabores de um "beijo travoso de umbú-cajá", como cantou Alceu Valença em sua Morena Tropicana! Muito legal, peregrinos amigos Eliana Castela e Mané do Café (vulgo Jorge)!

Reinaldo Ribeiro disse...


É espantoso como essa viagem pelas terras do Nordeste, onde o chão é tão árido e, no entanto, todos os caminhos por onde têm passado são tão verdejantes de amizade e de hospitalidade.
Tem sido uma bela viagem pelos campos da fraternidade, da cultura e de um Brasil que pouco (ou quase nada) aparece no Jornal Nacional.
Continuo a viajar com muito prazer por esse mundo desconhecido (pelo menos para mim) na companhia dos meus queridos amigos Eliana e Jorge.