quarta-feira, 28 de agosto de 2013

IMPOSSÍVEL SER FILÓSOFO SEM SER JUSTO

Profa. Inês Lacerda Araújo


Diógenes de Laércio relata a seguinte passagem: “Conta-se ter dito Heráclito a estranhos que o queriam visitar e espantam-se ao vê-lo aquecer-se junto ao fogão: podeis entrar, aqui também moram deuses”. Filosofia e vida cotidiana, essa união de real e ideal é o alimento da filosofia: há duas esferas, aquela em que projetamos como ideal filosófico a sabedoria, o logos; e a esfera prática com a necessidade de pensar, avaliar e lidar com as condições históricas herdadas e as experimentadas.

A filosofia e seus objetos de análise mudam com o passar do tempo histórico e o surgimento de novos temas e problemas.  Permanece a necessidade de pensar, raciocinar, ampliar o limiar da razão reflexionante, mas sem ultrapassar esses limites, pois não há como usar a razão e, ao mesmo tempo inventar procedimentos que fogem às regras do pensar. Quer dizer, estamos sempre imersos na lógica do possível, nos signos aprendidos, nas formas significantes.  

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A filosofia circunscreve quatro dimensões: a da atividade filosófica na cultura; a do rigor da reflexão, ou seja, o uso de conceitos próprios ao pensar de tipo filosófico; a dimensão da vida prática e as possíveis transformações; e aquilo a que a filosofia pode almejar e permite alcançar.

Como exemplo da primeira dimensão, Dewey (1859-1952) mostrou que a filosofia não pode se restringir às puras Formas, ao Ser, às Ideias como entidades em si mesmas, sublimes e superiores. Assim ela se fecha, se torna missão de experts ecom tal inacessível como bem cultural e imprestável para a tarefa educacional. Pelo contrário, as noções, as ideias, os conceitos, os propósitos da filosofia devem e podem ser abertos para um público mais amplo. O uso do vocabulário hermético, a pseudo erudição e a superespecialização, nada mais são do que refúgio de intelectuais afetados e pouco ou nada afeitos à difícil tarefa de levar a reflexão para iniciantes, para a escola, para a discussão pública de ideias.

O segundo ponto, o rigor da análise e da reflexão, a tarefa intelectual de busca da exatidão, do conceito apropriado, da noção iluminadora, podem ser ilustrados por Wittgenstein (1889-1951), com a atitude prático-teórica do uso habitual de conceitos, sempre relacional, com papel específico em nossas formas de vida. A filosofia tem a função terapêutica de reconduzir os conceitos ao seu uso normal, cotidiano.  Se alguém tem dificuldade em compreender o conceito de "essência", por exemplo, veja como este signo é empregado nos jogos de linguagem cotidianos. Exercita-se a análise e mergulha-se nas indagações, sem precisar de inúteis erudições.

O terceiro aspecto, o que a filosofia permite realizar, sua missão pedagógica, reside em capacitar à reflexão, à abstração, à apreensão da realidade, em três áreas afins: a da ética e da política; a da crítica cultural; e a dimensão do sujeito, isto é, a análise das formas pelas quais experimentamos nossa subjetividade, nossa individualidade.

Para Aristóteles (385-322 a C.), a ética e a política são co-dependentes. A sociedade política é um bem para todos, o homem é um animal social com noção do bem e do mal, do justo e do injusto. A sociedade política é uma reunião para o viver bem, possibilitar uma vida feliz e virtuosa; justo é o governante que busca a felicidade geral. 

Quanto à cultura, Nietzsche (1844-1900) critica a adesão a valores gastos, é preciso reinventá-los, como faz o poeta solitário. A cultura, diz ele, foi arrancada da simplicidade e da contemplatividade, há pressa, as águas da religião fluem e refluem, deixando para trás pântanos e poças; as nações se separam e querem esquartejar-se; nessa mundanização, as classes eruditas não são mais o farol, impera a barbárie, inclusive na arte e na ciência (cf. Considerações Extemporâneas).

E o sujeito? Foucault (1926-1984), analisa a história das práticas humanas que constituíram o sujeito moderno, o que desmistifica a pretensa essência, universalidade e unidade do homem.

E a última característica, o que se pode almejar com a filosofia? R. Rorty (1931- 2007) diz que ela não nos impele e nem obriga a um dever acima da reflexão e da crítica nem à defesa cega de uma ideologia; a filosofia não serve para solucionar problemas, para tal há governos e diversas ciências que podem oferecer soluções e novas práticas para problemas sociais, políticos e econômicos. Mas ela é indispensável para nossos projetos de vida, para transformar e apontar direções, para alcançar mais solidariedade, respeito à diferença, liberdade de crítica. A liberdade é imprescindível, sociedades com liberdade plena para refletir e agir, para valorar e criar, evitam o medo, a intolerância, o sectarismo, a cegueira ideológica.

Daí o título desta postagem: o filósofo ao refletir, avaliar, ser criterioso, ponderar, só pode e deve ser justo.


INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

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