sábado, 3 de agosto de 2013

A GRIPE DE HONK-KONG

Luiz Felipe Jardim


Em julho de 1968, na China, aconteceu uma epidemia de gripe que, de tão poderosa, rapidamente se espalhou pelo planeta, se transformou na terceira pandemia de gripe do século XX, e ficou conhecida como a ‘Gripe de Honk-Kong’. Em pouco tempo ela atuava em todo o mundo oferecendo a toda a humanidade aquilo que é da natureza das gripes oferecer: o seu coquetel variado de tosse, dores de cabeça, espirros, encatarroamentos, febre, dores de garganta, etc. A ‘Honk-Kong’, causada por um vírus do tipo H2N2, talvez pelo uso mais disseminado de antibiótico, o que evitou muito das complicações secundárias à gripe, não teve a letalidade da Gripe Espanhola de 1918-20 que matou mais de 50 milhões de pessoas. Mesmo assim, a Gripe de Konk-Kong matou cerca de um milhão de pessoas.
Aqui no Acre, que nesse tempo já andava, nadava e voava nas ondas do mundo, mergulhamos e respiramos as ondas da pandemia e também gripamos. Como todo o mundo, também inventamos e receitamos as mais estranhas, exóticas, bizarras e assustadoras receitas para a cura da gripe que se possa imaginar. Ainda mais: inspirados pela ‘hiperexuberância’ da floresta amazônica aliada às ‘coisas do progresso’. Para se ter uma ideia, até choque de puraquê enrolado no pulso do braço esquerdo, combinado com choque de fio elétrico enrolado no pulso do braço direito era indicado, e quiçá até praticado, para a cura das espirrâncias enfebrecidas da Gripe de Honk´Kong!

Era moda no mundo inventar remédios para a gripe. Fosse no Nepal-Butão ou na Thecoeslováquia, fosse na Iugoslávia, Congo Belga (países que ainda existiam) ou no Acre, que ainda persiste, nutridos por suas crendeirices, todos inventavam e tomavam as suas nativas ou recém globalizadas gororobas.

Eu, que ainda era menino e estava absolutamente gripado, andava morrendo de medo dos remédios, lambedores, gororobas de verdade e de responça, que já havia tomado, e andava ainda mais assustado com que as que ainda haveria de tomar. Tudo isso sem cair no choro, sem abrir o bué, afinal, eu achava que já era um homenzinho naquela fase de pré-adolescente. Mais branco que macaxeira lavada, eu realmente andava comendo insosso e bebendo salgado, literalmente. Cada gororoba era mais cabeluda que a outra! Arrepiante! A última que havia tomado era um concentrado de mel de abelhas jandaia com abelhas jandaia e tudo, cupim, tanajura, tabaco migado e cachaça. Tomava uma colher dessa iguaria de hora em hora.  Dá para imaginar porque as fervências de minha febre e o tinir das minhas tosses aumentavam a cada 60 minutos... seguidas de longos e sentidos gemidos, naturalmente...

Como o Acre já estava no mundo, aqui chegavam, trazidas pelos aviões DC3 da Cruzeiro do Sul e da Vasp, revistas de circulação nacional como: Fatos e Fotos, Manchete, O Cruzeiro e Realidade. Foi na revista Realidade (comprada por meu pai na banca de revistas do Arnóbio Marques e que foi anterior à do Ariosto) que encontrei o remédio e a cura, não da gripe, mas para as gororobas.

A matéria de miolo da revista Realidade do mês, era sobre a gripe que assolava o mundo. Páginas e páginas sobre o assunto que analisavam os mais diversos aspectos do tema, desde os rigorosamente científicos até os humorísticos. Numa página dedicada às ‘receitas de remédios’ para a cura da gripe, um médico em tom divertido, irônico, sarcástico e tenebroso ‘receitava’: "banhe o paciente de gripe em banheira cheia de gelo. Imediatamente depois, faça-o tomar banho de água quente. Dê a ele água gelada e imediatamente após dê café bem quente. Faça isso repetidas vezes. Em pouco tempo o paciente estará com pneumonia. Nesse caso, traga-o para o hospital. Ele será rapidamente curado. Pneumonia é fácil de curar com remédios, gripe é impossível".

Era o que eu precisava. Ali estava minha redenção. Munido de todo arsenal científico, que consegui reunir naquela matéria de revista e em alguns poucos verbetes da primeira edição da Enciclopédia Barsa, puxei de dentro da minha gripe as forças que toda grande fraqueza contém. Aviventei-me. Toquei fogo na canjica, pintei a saracura e os canecos, soltei os cachorros d’alma e bradei veementemente contra as gororobices a que era obrigado a me submeter.

Da minha trincheira no canto da cama e encostado na parede, ainda que azonzado, mas também afoguentado pela efervecência da febre, apontava a revista, como se uma cruz de Cristo fosse, quando as tias, as avós, as comadres, as vizinhas ou conhecidas traziam suas gororobas para eu beber.

Ao me verem naquele estado, elas me olharam de um modo estranho, enigmático, quase de soslaio, mas piedoso. Instintivamente senti que corria perigo. Acharam que eu estava bem piorado e que até começava a ‘variar da bola’ de tão encatarroado e enfebrecido que estava. Resolveram, então, me aplicar um remédio mais apropriado, um lambedor mais forte. Uma gororoba mais poderosa.

Eu havia lido corretamente a cartilha dos instintos e estava certo: realmente corria perigo. A tal nova gororoba que eu deveria forçosamente tomar, da receita anterior, preservava o mel de abelhas jandaia com abelhas jandaia e tudo, além do tabaco migado e da cachaça, mas substituía os inofensivos e singelos cadáveres de cupins e tanajuras, pelos mais proficientes, robustos e reluzentes de formiga tocandera, lagarta de fogo e piolho de cobra... ah, e ‘aplicados’ de meia em meia hora. A minha sorte foi que esse santo remédio deveria ficar ‘no sereno’ por duas noites alternadas para obter o seu poder curativo, isso me deu exíguo tempo de sobrevida. E foram nesses dois dias de bônus que a vida me ofereceu (grandes merecimentos eu tinha, heim!) que os enfebrecimentos cessaram e as friolências também; as espirrâncias foram embora e as escorrências pararam; as dores nas juntas sumiram, enfim - e mil vezes UFFA!!! - a gripe acabou. Escapei da gororoba. Sobrevivi.

Poucos dias depois, num domingo de almoço de aniversário em que estavam reunidos muitos parentes e amigos, falei sobre os vírus da gripe, do seu ciclo de vida, do seu poder de contágio de pouco mais de uma semana, etc.

As tias, avós, comadres vizinhas e conhecidas me olharam com visível e expressivo espanto. Entreolharam-se e, após uma indicação silenciosa e tácita, uma disse por todas: "Deixe de ser presepeiro menino, deixe de papagaiada, se você não tivesse tomado os 'remédios' que lhe demos você ainda estaria tresvariando de febre e do juízo em cima daquela cama".

Olhavam para mim como se eu fosse um fervoroso herege carregando uma cabeça de porco assado sob o braço e pregando minhas heresias no meio da multidão da procissão de sexta-feira da paixão. Ante aqueles olhares fuzilantes, imediatamente concordei. Claro, não sou de largar a mão por cima de lagarta de costa cabeluda, eu sabia que cada uma delas, naqueles tempos de Gripe de Honk-Kong, trazia consigo um 'vidrinho' das suas gororobas para alguma eventualidade...


* Luiz Felipe Jardim leciona História.

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