quinta-feira, 30 de setembro de 2010

ESTADO DE SÍTIO - Albert Camus


Albert Camus (1913-1960) escreveu quatro peças: Calígula, O Mal-Entendido, Estado de Sítio e Os Justos. Estado de Sítio estreou no teatro Marigny, de Paris, em 27 de Outubro de 1948. A peça é composta de um prólogo e três partes. O prólogo mostra os habitantes de Cádiz (Espanha) amedrontados com a aparição de um misterioso cometa. A primeira parte apresenta a vida normal da cidade, com suas alegrias, preocupações, misérias, artinhas. A segunda mostra os absurdos de uma burocracia levada ao extremo, criada para gerar o desentendimento entre as pessoas. Por fim, a derrota final da Peste, acossada pelo povo que Diogo incita à rebelião. Em Estado de Sítio temos o anseio de liberdade representado pela cidade de Cádiz, a ternura de Diogo pelo povo comum, com todas as suas mesquinharias e suas acanhadas generosidades e a aversão a qualquer totalitarismo e aos programas niilistas.
No trecho abaixo, diante do corpo de Vitória, sua amada, Diogo propõe à Peste trocar a vida dele pela da moça. Todavia, a Peste (símbolo dos ditadores) sugere trocar a vida dos dois em troca do domínio absoluto sobre a cidade. Diogo recusa-se, afirmando que ele não se julga com o direito de sacrificar o bem-estar do povo para conquistar a sua felicidade pessoal. A Peste procura ainda convencê-lo a não se sacrificar em nome de uma gente tão pequena e covarde, que nem sequer tem condições de apreciar com justiça tamanha nobreza de sentimentos. São inúteis os convites e as críticas, Diogo deixa-se morrer...

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DIOGO
É duro morrer.

A PESTE
É duro.

DIOGO
Mas é duro para todos.

A PESTE
Imbecil! Dez anos do amor desta mulher valem mais do que um século da liberdade destes homens.

DIOGO
O amor desta mulher é meu reino, meu, apenas. Posso fazer dele o que quiser. Mas a liberdade desses homens pertence-lhes. Não posso dispor dela.

A PESTE
Ninguém pode ser feliz, sem fazer mal aos outros. É a justiça desta terra.

DIOGO
Não nasci para consentir nessa justiça.

A PESTE
Quem te pede para consentir? A ordem do mundo não mudará, ao sabor de teus desejos. Se queres mudá-la, deixa teus sonhos e toma conhecimento de tua realidade.

DIOGO
Não. Conheço a receita: é preciso matar, para suprimir o assassínio; violentar, para reparar a injustiça. Há séculos que isso dura! Há séculos que os senhores de tua raça apodrecem a chaga do mundo, sob o pretexto de curá-la – e, no entanto, continuam a vangloriar-se de sua receita, uma vez que ninguém lhes riu na cara!

A PESTE
Ninguém ri, porque realizo. Sou eficaz.

DIOGO
Eficaz, claro! E prático. Como o machado!

A PESTE
Basta, pelo menos, olhar os homens. Sabe-se, então, que toda justiça é bastante boa para eles.

DIOGO
Depois que as portas desta cidade se fecharam, tive todo o tempo para olhá-lhos.

A PESTE
Então, já sabes que eles te deixarão sempre só. E o homem só deve morrer.

DIOGO
Não. É uma tese falsa. Se eu fosse só, tudo seria fácil. Mas, por bem ou por mal, eles estão comigo.

A PESTE
Belo rebanho, na verdade. Mas cheira mal.

DIOGO
Sei que eles não são puros. Eu também não o sou. Além disso, nasci entre eles. Vivo para a minha cidade e para a minha época.

A PESTE
A época dos escravos!

DIOGO
A época dos homens livres!

A PESTE
Espantas-me. Em vão os busco. Onde estão eles?

DIOGO
Em tuas prisões e em teus cemitérios. Os escravos estão nos tronos.

A PESTE
Veste teus homens livres com o uniforme de minha polícia e verás em que eles se transformam.

DIOGO
É verdade que lhes acontece serem convardes e cruéis. É por isso que não têm, mais do que tu, o direito ao poder. Homem algum tem bastante virtude para que se lhe possa ser permitido o poder absoluto. Mas é por isso também que esses homens têm o direito à compaixão que te será recusada.

A PESTE
A covardia é viver como eles vivem: pequenos, necessitados, sempre na mediocridade.

DIOGO
É na mediocridade que eu os amo. E se não for fiel à pobre verdade que partilho com eles, como o seria ao que tenho de maior e de mais solitário?

A PESTE
A única fidelidade que conheço é o desprezo. (mostra o Coro, prostrado, no pátio.) Olha! Vale a pena

DIOGO
Só desprezo os carrascos. Faças o que fizeres, esses homens serão maiores do que tu. Se lhes acontece, uma vez, matar, é na loucura de um instante. Tu, não. Tu massacras segundo a lei e a lógica. Não troces de suas cabeças curvadas, pois há séculos o cometa do medo passa por cima deles. Não rias de seu ar de temor: há séculos eles morrem e seu amor é dilacerado. O maior de seus crimes terá sempre uma desculpa. Mas não encontro desculpas para o crime que, em todos os tempos, têm cometido contra eles e que, para arrematar, tiveste a idéia de codificar nessa imunda ordem que é a tua. (A Peste avança para ele.) Não baixarei os olhos!

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CAMUS, Albert. Estado de Sítio / O Estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (p. 135-139)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

LIBERDADE DE IMPRENSA, LIBERDADE DE EXPRESSÃO

Profª. Inês Lacerda Araújo


Uma das conquistas da democracia é a liberdade. Filosoficamente e politicamente, liberdade é um conceito muito amplo, fácil de definir, difícil de praticar. Esse conceito se torna um requisito de constituições europeias e dos EUA, desde o século 17.

O direito e o dever de promover a liberdade dos cidadãos de decidir, de opinar, de participar, de intervir, tem enfrentado vários obstáculos, entre eles, a dificuldade para obter informação precisa, responsável, ampla, direta, clara, acessível.

Em primeiro lugar, jornais são pagos; o acesso pela internet, também, a não ser em certos locais (empresas, escolas). E isso restringe a informação. A TV com os noticiários, atinge uma minoria que está informada, por exemplo, sobre o conflito no Oriente Médio, onde fica o Afganistão, qual é o IDH do Maranhão, etc. Como a maioria não compreende a mensagem, troca de canal, prefere o entretenimento.

O público informado é composto de profissionais liberais, estudantes universitários, comerciantes, industriais, enfim, se você pedir ao entregador de pizza informações sobre o que ocorre na Câmara dos Deputados, ou quem é Serra, o que fez Dilma, ele não sabe. O que é o pré-sal, ele não sabe. Sem tempo, sem condições de acesso à informação, sem capacidade de ler um parágrafo de um jornal e compreender a mensagem, pode-se dizer que essa pessoa não é livre!

Na população brasileira, há 55% de analfabetos funcionais. A informação que atinge esse público vem filtrada por palavras de ordem, pelas imagens da mídia, pelo ouvir dizer, pela propaganda.

Nos últimos anos a informação sobre o governo vem da propaganda oficial, por isso mesmo é lamentável que Lula se queixe da imprensa, da TV. Além dos veículos oficiais de propaganda do governo federal, há o uso massivo dos meios de comunicação de massa para alardear feitos e maquiar o que não é realizado. E os jornais publicam tudo o que Lula diz e faz! Mas também publicam o que o governo fez de errado, jornalistas opinam, é seu dever. Se isso irrita o governante, ele que trate de ouvir, de ler, de atentar para essas opiniões e não desqualificá-las e pôr sindicatos para protestar contra a imprensa. Aliás, a própria imprensa noticiou isso...

Fazer a massa de desinformados acreditar que não há e nem haverá presidente melhor, discursar em favor de uma canditada imposta, que eu chamo de "aprendiz de feiticeiro", só teve resultado pelo avanço na economia, por seguir a antes aviltada "cartilha do FMI", governar de acordo com princípios econômicos comprovadamente eficazes, que nada têm de ideológicos.

Voltando à liberdade como princípio das constituições democráticas e do estado de direito, seu exercício depende de espaços públicos nos quais a troca comunicativa obedece à possibilidade universal de acesso, ao empenho em buscar mais e melhores informações, que possam ser trocadas, respondidas, pensadas, em resumo, o que Habermas chamou de ação comunicativa, baseada nos pressupostos de validez criticáveis: verdade, atendimento a normas de convivência social, e empenho pessoal, veracidade.

Esse público, entretanto, para chegar a esse nível de responsabilidade e liberdade, precisa de educação, de muita educação e de qualidade, calcada nos mesmos princípios políticos e éticos prezados pela sociedade. Por isso não há democracia sem educação, não há democracia sem liberdade, e não há liberdade sem educação. Trata-se de um círculo virtuoso.

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* INÊS LACERDA ARAÚJO doutora em Estudos Linguísticos, filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

sábado, 25 de setembro de 2010

CANTO PARA O SENEGAL - BANDA REFLEXU´S


A Banda Reflexu's nasceu em meados dos anos 80, uma das precursoras do Axé Music (quando este ainda tinha qualidade) tendo à frente uma cantora negra entoando canções étnicas. Seu ritmo caracterizava-se com a cadência e as letras das canções de Bob Marley misturados à música Latina e o traço de afirmação da negritude. O LP Reflexus da Mãe África, de 1987, vendeu mais de 1 milhão de cópias. Músicas como: Madagascar Olodum, Canto para o Senegal, Suingue de Verão, Alfabeto do Negão fizeram um grande sucesso pelo Brasil afora. A banda era composta por: vocal: Marinez e Julinho, Bateria: Reinaldo, Percussão: Abílio, Piruete e Guitarra: Marquinhos.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

A VELHA CONTRABANDISTA

Stanislaw Ponte Preta

Diz que era uma velhinha que sabia andar de lambreta. Todo dia ela passava pela fronteira montada na lambreta, com um bruto saco atrás da lambreta. O pessoal da alfândega – tudo malandro velho – começou a desconfiar da velhinha.

Um dia, quando ela vinha na lambreta com o saco atrás, o fiscal da alfândega mandou ela parar. A velhinha parou e então o fiscal perguntou assim pra ela:

– Escuta aqui, vovozinha, a senhora passa por aqui todo dia, com esse saco aí atrás. Que diabo a senhora leva nesse saco?

A velhinha sorriu com os poucos dentes que lhe restava e mais os outros, que ela adquirira no odontólogo, e respondeu:

– É areia!

Aí quem sorriu foi o fiscal. Achou que não era areia nenhuma e mandou a velhinha saltar da lambreta para examinar o saco. A velhinha saltou, o fiscal esvaziou o saco e dentro só tinha areia. Muito encabulado, ordenou à velhinha que fosse em frente. Ela montou na lambreta e foi embora, com o saco de areia atrás.

Mas o fiscal ficou desconfiado ainda. Talvez a velhinha passasse um dia com areia e no outro com moamba, dentro daquele maldito saco. No dia seguinte, quando ela passou na lambreta com o saco atrás, o fiscal mandou parar outra vez. Perguntou o que é que ela levava no saco e ela respondeu que era areia, uai! O fiscal examinou e era mesmo. Durante um mês seguido o fiscal interceptou a velhinha e, todas as vezes, o que ela levava no saco era areia.

Diz que foi aí que o fiscal se chateou:

– Olha, vovozinha, eu sou fiscal de alfândega com quarenta anos de serviço. Manjo essa coisa de contrabando pra burro. Ninguém me tira da cabeça que a senhora é contrabandista.

– Mas no saco só tem areia! – insistiu a velhinha. E já ia tocar a lambreta, quando o fiscal propôs:

– Eu prometo à senhora que deixo a senhora passar. Não dou parte, não apreendo, não conto nada a ninguém, mas a senhora vai me dizer: qual é o contrabando que a senhora está passando por aqui todos os dias?

– O senhor promete que não “espáia”? – quis saber a velhinha.

– Juro – respondeu o fiscal.

– É lambreta.

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PRETA, Stanislaw Ponte. Dois amigos e um chato. São Paulo: Ed. Moderna, 1986.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

VISLUMBRES

Manoel Mesquita é um poeta acreano, ocupa a cadeira 02 da Academia Acreana de Letras. E como poeta, um criador de belezas. Sua poesia é simples, assimétrica, foge da técnica, sai do coração. E o que brota do coração é mais digno de apreciação, de amor. É o poeta dos vislumbres, como os inscritos abaixo. O homem sente, a poesia nasce.
Foto: Neuza Teixeira
Entre a vida e a morte
o importante é amar.
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Foto: Luiz Marcos Costa Gomes
Para mudar algo tem-se que ser forte
o homem tinha tudo para ser feliz
faltava apenas a descoberta.
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Foto: Marlon Stein
Tudo é belo, do jeito que é!
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Foto: Miguel Ángel 13
Viva aqui de tal maneira
que o aqui não se torne importante.
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Foto: sonia.henriques
Tudo o que guardei perdeu-se, foi-se
você tem somente aquilo que compartilhou.
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Foto: Malcomtux
Sinta as descobertas e não esqueça o natural!
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Foto: alessandrapilar
O amor é a percepção do amado.
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Foto: marcoscampos
Nesse mundo, nada é realmente conhecido
a ignorância é absoluta, suprema
quando entender, terá novamente
aqueles olhos bonitos, quanto criança.
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Foto: jonathas.barreto
Para perder-se é necessário a liberdade.
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Foto: MULHER SONHADORA
Se a mulher foi criado a partir do homem
é um refinamento muito mais purificado.
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Foto: MONCHO REY
Estar só é belo
estar solitário é feio.
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Foto: Maria Ruch
Mas agora sabe, ser enganado
é melhor que perder a confiança.
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Foto: ♣Cleide@.♣ Off/on for a while♣
Futuro e passado, trazem pensamentos
e este destrói os sentimentos
nos pensamentos esquecem-se do coração.
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Foto: mcouto
O que mata o povo é o dinheiro
é a maior verdade que se disse.
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Foto: jonycunha
Não permita que ninguém seja seu senhor
olhe dentro de você
o medo, não pode lhe dá um caráter
pode sim, dar-lhe uma impotência de fraco.

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MESQUITA, Manoel. Vislumbres. Rio Branco: edição do autor, 1994.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A DIFÍCIL ARTE DE DEFINIR O AMOR

Profª. Luísa Galvão Lessa
Indague o leitor o quê é o Amor, se saberia defini-lo? Se não souber, não se assuste, pois em verdade ninguém conseguiu, ainda, uma definição precisa. O Amor tornou-se uma das mais raras experiências de vida. Sim, fala-se sobre ele, estórias são escritas, canções são compostas, filmes são feitos, vê-se na televisão, no rádio, nas revistas - uma grande indústria continuamente supre o mundo com a idéia do que seja o Amor. Muitas pessoas estão constantemente envolvidas nisso, ajudando outras a entenderem o que é o amor. Mas ainda assim permanece como fenômeno desconhecido para milhões de pessoas no mundo, quando deveria ser o mais conhecido.

O Amor é uma experiência tão pessoal e intransferível como a morte. E, aqui, neste texto, as trilhas são os filósofos, poetas, artistas, amantes, apaixonados, gente que reflete o tema na busca de uma resposta. Se desejar, caminhe comigo e dê-se conta que a vida sem amor é NADA. O amor é TUDO!

Mozart, na ópera "O Casamento de Figaro", faz o imberbe e adolescente Querubino perguntar: "Dizei-me, vós que o sabeis: o que é o amor?" - todo o mundo se esgoelou, mas ninguém lhe respondeu a contento. Poetas e filósofos não conseguiram aproximarem-se mais do que eles (Mozart e Querubino) na difícil definição. E a característica mais notável a respeito é que todas as respostas discordam uma das outras.

Platão, por exemplo, sustenta ser o amor uma apreciação da beleza, principalmente da beleza das idéias abstratas e dos conceitos matemáticos. Descartes afirma que o amor é uma emoção em que a alma é incitada a juntar-se, de bom grado, a objetos que se afiguram agradáveis.

Dante, encerrando sua obra gigantesca, vinca o amor como uma verdade cósmica: "O amor que move o sol e as outras estrelas". O Fausto de Marlow espera que Helena o torne imortal com um único beijo. Walter Scott resume, sob o ponto de vista dos românticos, o amor como a força que age e domina a vida dos seres humanos, ao dizer: ”O amor governa a corte, o campo, o bosque. E os homens embaixo e os santos em cima. Pois o amor é o céu e o céu é o amor”.

Com se pode sentir, só para ilustrar umas poucas definições, o Amor é uma questão de vida, nunca se esgota, nunca se acaba. O que uma pessoa deve desejar e querer, intensamente, é amar mais, sempre mais, cada vez mais, cada dia mais. E que posa viver o Amor entre um homem e uma mulher, pais e filhos, entre as pessoas na terra, entre o Céu e a Terra. Que esse AMOR traga a PAZ, a HARMONIA, a TRANQUILIDADE, também a PAIXÃO, o RESPEITO de uns pelos outros. Pois o Amor é a porta da FELICIDADE!

E, embora cada pessoa ame a sua maneira e o modo de amar tenha sofrido transformações, através dos tempos, o Amor, desde a idade da pedra (quando o homem saia da caverna, pegava a mulher pelos cabelos e trazia-a para si), ainda é o mesmo na sua base fundamental: o encontro da outra metade para a realização do verdadeiro ideal de convívio, compreensão e perpetuação da espécie. E mesmo que a concepção do amor varie segundo os costumes de cada povo, quase todas as definições e as formas de exercê-lo são atribuídas aos gregos quando lhe deram dois nomes: "Eros" (o amor carnal) e "Agape" (o amor espiritual).

Do que aqui se reflete, é romântico seguir Shakespeare, no romance Romeu e Julieta, por acreditar que esse tipo de amor tem sempre, na sua descoberta, momentos de revelação e de ampliação do quadro que é a vida. Pois é ele quem se anuncia na beleza das flores, no azul do mar e do céu, no verdor das matas, na hora da Ave-Maria! Cantado em verso e prosa o Amor inspira o poeta a ver em tudo a sua essência. O Amor é também sentimento, atração, doação, alimento do corpo e da alma. O Amor é sentir a vida, é nascer de novo e diferente como se a vida mudasse o curso, querer a felicidade do outro acima de tudo, ficar feliz por dentro ouvindo o canto do próprio coração. Na verdade o Amor é tanta coisa e tanto que a definição deveria ser somente: SENTIR!!! SENTIR!!! SENTIR!!!

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**LUÍSA GALVÃO LESSA é Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestra em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Ocupa a cadeira de número 34 na Academia Acreana de Letras. É acreana de Tarauacá.

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

O ESTRANGEIRO

Albert Camus


Meursault é a personagem protagonista do romance O Estrangeiro (1942) de Albert Camus, Nobel de Literatura de 1957. Meursult é um homem indiferente a todas as normas sociais, impermeável a todos os valores morais. Condenado por matar dois árabes numa praia, tudo que declara para justificativa de seu ato injustificável é que o fez “por causa do sol”. Dizer mais do que isso, tenta defender-se, significaria acatar as regras de um jogo que ele recusa.
Selecionei um dos trechos do livro, em que Meursault, na prisão, narra o seguinte fato...


Entre a enxerga e as tábuas da cama, eu encontrara, com efeito, um velho bocado de jornal, amarelecido e transparente, quase colado ao pano. Relatava um acontecimento cujo início faltava, mas que devia ter sucedido na Tchecoslováquia. Um homem partira de uma aldeia para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, rico, regressara casado e com um filho. A mãe dele, juntamente com a irmã, tinha uma estalagem na aldeia. Para lhes fazer uma surpresa, deixara a mulher e o filho noutra estalagem e fora visitar a mãe, que não o reconheceu. Por brincadeira, tivera a idéia de se instalar num quarto como hóspede. Mostrara o dinheiro que trazia. De noite, a mãe e a irmã tinham-no assassinado a martelada e atirado o corpo ao rio. No dia seguinte de manhã, a mulher do desgraçado viera à estalagem e revelara, sem saber, a identidade do viajante. A mãe enforcara-se. A irmã atirara-se num poço. Devo ter lido esta história milhares de vezes. Por um lado, era inverossímil. Por outro lado, era natural. De todos os modos, achava que o viajante merecera até certo ponto a sua sorte e que nunca se deve brincar com estas coisas. (p. 247-248)

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CAMUS, Albert. Estado de Sítio / O Estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

PENSAMENTO E LINGUAGEM

Profª. Inês Lacerda Araújo


É possível haver pensamento sem linguagem? Filósofos como Platão, Descartes, Kant, Bergson, acham que a linguagem é manisfestação de algo "superior", o intelecto, as ideias, a mente, a subjetividade, a razão.

Outros, como Peirce, Dewey, Witgenstein, Habermas, Davidson, Rorty, em geral os linguistas e os estruturalistas, consideram que as capacidades de raciocínio, pensamento, recordação, memória, associação, enfim, o que se rotula como "mental", depende do aprendizado de signos, de sinais, de apreensão de imagens, leitura dessas imagens. Enfim, é necessário algum tipo de comunicação articulada, estruturada, para haver processo mental. E, como condição necessária, a fisiologia do cérebro. Mas essa não é condição suficiente, sem aprendizado, não há linguagem, portanto, não há pensamento.

Assim, animais superiores (cachorros, por exemplo) podem aprender que "Cuidado", pelo tom pronunciado e associado a certa situação, exige uma pronta resposta. Mas não podem compreender o aviso "Tome cuidado ao atravessar a rua".

Crianças, sim. Elas aprendem primeiro a se manifestar com balbucios, gestos, visualizam e memorizam pessoas, associam sons e signos a situações, começam a falar e simultuaneamente raciocinam, memorizam, são capazes de afeto, e aos, poucos de julgar, de avaliar, de corresponder com atitudes, reagir, etc.

Sinais são criados, são convencionais, como os de trânsito. Signos linguísticos são articulados, podem ser ditos, compreendidos, transmitidos por escrito, oralmente, por gestos. Atos de fala como uma afirmação, uma ordem, um pedido, são imediatamente interpretados pelo contexto em que são ditos, pelo tom da voz, pelo gesto que eventualmente os acompanha.

A palavra "cão" não morde, quer dizer, o signo não é o objeto que ele indica, expressar pela linguagem algo para alguém, isso é da cultura humana, é aprendido, varia conforme as línguas.

As infinitas variações da linguagem dependem de uma estrutura básica, de um vocabulário, de regras assimiladas pela criança quando exposta à linguagem. Sem essa exposição, ela não pensaria, isto é, não poderia reter significações, portanto, não memorizaria, não faria associações, não entenderia uma mensagem.

Wittgenstein disse que se um leão pudesse falar, não o compreenderíamos. Isso porque falar é usar diferentes jogos de linguagem como contar uma história, rir de uma piada, usar expressões para significar uma infinidade de situações, empregar instrumentos de medida, saber o que significa dizer "meu computador foi comprado a prestação"; "a próxima parada é Praça Tiradentes"; "venha cá!"; "sua doença foi finalmente diagnosticada". Além disso, há textos diversos, como os comerciais, literários, jornalísticos, etc.

Um leão mandaria que o outro se cuidasse ou que se arriscasse? Ou a própria questão é absurda? Ao que tudo indica, cuidar é um comportamento humano, correr risco é algo com significado para culturas humanas, implica, por exemplo, sofrer acidente, morrer. O leão não "sabe" que vai morrer... Ele reage, agride, se defende, mas isso somos nós que dizemos, não ele.

Talvez por isso filmes de ficção científica sejam em sua maior parte tão ridículos! Seres que falam e pensam como nós, isso é simplesmente absurdo! Observe que usei o termo "pensam" no sentido de entender algo, poder agir e reagir em certas situações. E tudo isso pode ser dito em várias línguas, com variações de uso e de significado em cada uma delas!

Obs.: para esta postagem, foi preciso usar a linguagem... Não é incrível?

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*INÊS LACERDA ARAÚJO doutora em Estudos Linguísticos, filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

CORONEL DE BARRANCO

Isaac Melo


A leitura de Coronel de Barranco é como abrir um álbum para o qual se é transportado a cada imagem que surge tamanha a precisão na descrição das cenas e personagens, sem cair no rigorismo da técnica e sem negligenciar o olhar poético. O romance, nas palavras acertadas de Mário da Silva Brito, é um documento que reconstitui e disseca por meio de trama densa e estruturada, meio século do passado amazônico.

Cláudio de Araújo Lima publicou Coronel de Barranco em 1970. Nascido em 1908, em Manaus, Araújo Lima era além de exímio romancista, tradutor e ensaísta, médico psiquiatra. Seu pai, J. F. Araújo Lima, havia sido também um importante homem de letras no Amazonas, sendo ainda médico, sociólogo e prefeito de Manaus. Em 1924, ao envolver-se na revolta contra Bernardes, Cláudio de Araújo Lima foi preso e deportado para o Acre, onde permaneceu homiziado num seringal do Alto-Purus. Com as experiências em que conheceu, objetivamente, o problema da forma da exploração da borracha, juntamente com suas reminiscências no Amazonas e das histórias contadas por seu pai é que Araújo Lima fará de Coronel de Barranco uma obra singular.

O livro se compõe de três partes: I As sementes, II As árvores e III As cinzas. A primeira relata como as sementes foram surrupiadas da Amazônia pelo inglês Wickham e levadas para Londres, onde em estufas brotaram e foram transplantadas para os seringais do Oriente. A segunda faz uma descrição do auge do ciclo da borracha, acentuando a figura do coronel Cipriano, Matias Albuquerque e a vida nos seringais. Na última, o autor se detém na descrição da crise da borracha, na decadência dos seringais e no efeito sobre os principais centros urbanos, além do desfecho final das personagens.

O romance abarca um período que vai de 1876 a 1926. Descreve, nas palavras de Mário Brito, a evasão da hevea brasiliensis, surrupiada pelos ingleses com a nossa complacência, o apogeu do que se chamou civilização da borracha, e, em seguida, o seu declínio, provocado pelo cultivo racional da maravilhosa planta em terras orientais.

A personagem central é Matias Albuquerque que faz uma narrativa de reminiscências a começar em 1876 quando o inglês Henry A. Wickham chega à Amazônia com o pseudo-objetivo de realizar pesquisas. No momento, Matias consta 18 anos, recém saído da capital, onde estudou, em colégio interno, por sete anos, para morar com o tio (Amâncio) num seringal, no Alto-Amazonas. Por ser o único que entende um pouco de inglês Matias é designado por seu tio a acompanhar o inglês Wickham, a quem acolhera em seu seringal. O inglês começa a reunir amostras de plantas, insetos, animais e sementes, dentre estas, as sementes de seringueiras, sem que ninguém entenda o porquê de sua fascinação por tudo aquilo.

Quando chega o Vapor Amazon, da empresa Inman Line Steamship-Liverpool To Alto-Amazonas, Wickham apressadamente reúne tudo o que retirou da floresta e armazena no vapor. Ali, escondidas e surrupiadas por Wickham, estão mais de 70 mil sementes de seringueiras, das quais mais de 7 mil irão brotar no Jardim Botânico de Kew Garden de Londres e depois serão enviadas para o plantio ordenado em Singapura e Malásia. Os anos de prosperidade e esbanjamento na Amazônia estariam contados. Matias parte juntamente com Wickham para Londres depois de uma tragédia ocorrido no seringal de seu tio.

Com a produção dos primeiros pneumáticos, em 1888, pelo engenheiro escocês John Boyd Dunlop, a Amazônia, sobretudo Manaus e Belém, os dois centros principais da civilização da borrracha, se deslumbravam ante o crescimento assombroso dos preços da borracha e gozavam progressos nunca imaginados numa época que entrou para a história como belle époque.

Enquanto os seringalistas, milionários a esbanjar fortunas em pensões de Manaus e Belém, a beber champanha e finos licores franceses, ou a comer caviar e latarias europeias em plena selva, os ingleses, pelas mãos do Dr. Trimem, diretor do Jardim Botânico de Parandenyva, em Malaca, no ano de 1885 realizava o primeiro corte das serigueiras.

Depois de quase 30 anos na Europa Matias retorna ao Brasil e deseja fazer uma nova experiência em algum seringal amazônico. Um amigo o apresenta a um seringalista do Acre, Coronel Cipriano Maria da Conceição, dono do seringal “Fé em Deus”, que havia ascendido de seringueiro a patrão. Araújo Lima se utiliza do Coronel Cipriano como uma síntese de todos os coronéis de barranco daquela época. Homens, na sua maioria, rudes, gananciosos, esbanjadores, autoritários, mas, no fundo, capazes ainda de atos de bondade. E assim, permite também uma descrição dos “desvalidos e tantas vezes beribéricos seringueiros, mansos ou brabos, impedidos de organizar famílias, proibidos de caçar, plantar e pescar, forçados a efetuar todos os seus suprimentos no armazém do patrão”, a preços exorbitantes, realizando aquilo que Euclides da Cunha um dia disse: “na Amazônia o homem trabalha para escravizar-se”.

Matias foi “cúmplice” sem saber de Wickham no roubo das sementes da seringueira. Ele conhecia os seringais do Oriente, e do iminente perigo que corria a borracha brasileira. E vivia comentando essa possibilidade para com o coronel Cipriano, que incrédulo, pilheriava dizendo que era besteira de gringo, pois a nossa borracha era a melhor e insuperável.

Quando chega o ano de 1914 a borracha produzida no Oriente supera a brasileira, espalhando desespero aos quatro cantos da Amazônia. É o início da decadência da borracha que coincidiu também com a deflagração da Primeira Grande Guerra. A borracha brasileira perde valor e, drasticamente, a produção diminui, sendo que em 1916 a nossa produção não passava de 36 mil toneladas contra 150 mil da Oriental. O declínio do coronel Cipriano, preso e condenado por matar a ex-amante que havia fugido com o homem de confiança de seu seringal, serve como uma metáfora para resumir a própria crise da borracha.

Coronel de Barranco persiste como uma das páginas mais instigantes da literatura amazônica e que se preza como denúncia e advertência. Uma fotografia borrada pelas mãos esfaimadas do tempo, de um período de contrastes e confrontos, de coronéis e bordéis, um tempo em que dinheiro também se prestava a boas baforadas...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

O NARIZ //fragmento do conto Zadig ou o destino//

Voltaire


Certo dia Azora regressou de um passeio muito irada e com grande exclamações.

– O que você tem, minha querida esposa? Quem a colocou nesse estado?

– Ah! Você ficaria como eu, se visses o que presenciei. Fui levar conforto à viúva Cosru, que faz dois dias construiu um túmulo para seu jovem marido, perto do córrego que banha as redondezas. Na sua aflição, havia prometido aos deuses que ficaria junto do túmulo enquanto corressem a seu lado as águas do córrego.

– Pois então! Aí está uma louvável mulher, que amava de verdade seu marido!

– Ah! Se você soubesse no que ela se ocupava quando fui visitá-la!

– No quê, minha bela Azora?

– Ela estava mandando desviar o córrego.

E Azora estendeu-se em tais insultos, explodiu em recriminações tão violentas que em nada agradou a Zadig tanta ostentação de virtude.

Tinha este um amigo, chamado Cador, que era um daqueles jovens aos quais sua mulher atribuía mais virtudes e méritos que aos outros; confiou-lhe os seus pensamentos e assegurou-se, como podia, da sua fidelidade, dando-lhe um valioso presente. Azora, que havia passado dois dias no campo em casa de uma amiga, voltou no terceiro dia. Criados em lágrimas anunciaram-lhe que o marido tinha morrido de repente naquela noite e que, não ousando levar-lhe essa terrível notícia, acabavam de enterrá-lo no túmulo de seus pais, no fundo do jardim. Ela chorou, arrancou os cabelos e jurou morrer. À noite, Cador pediu licença para lhe falar, e os dois choraram. No dia seguinte, choraram menos, e jantaram juntos. Cador confessou que o amigo havia lhe deixado a maior parte da sua fortuna, e deu a entender que, para ele, a maior felicidade seria compartilhá-la com Azora. A mulher chorou, irritou-se, voltou às boas; a ceia foi mais longa que o jantar; conversaram com mais confiança. Azora fez elogio ao defunto; mas confessou que em vida Zadig possuíra alguns defeitos dos quais Cador era isento.

Durante a ceia, Cador quixou-se de uma violenta pontada no baço; a mulher, nervosa e solícita, mandou trazer todas as essências com que se perfumava, para ver se alguma não seria boa para aquilo; lamentou muito que o grande Hermes já não estivesse em Babilônia; dignou-se até tocar no ponto onde Cador sentia dores tão fortes.

– Você costuma ter muitos desses cruéis ataques? – perguntou-lhe, cheia de compaixão.

– Às vezes eles me levam à beira do túmulo, e só há um remédio que me alivia: é aplicar no local o nariz de um homem falecido na véspera.

– Estranho remédio! – espantou-se Azora.

– Não mais estranho – retrucou Cador – do que os saquinhos do sr. Arnoult contra apoplexia.

A esse raciocínio, juntamente com os extraordinários méritos do rapaz, rendeu-se afinal a mulher. “Em todo caso”, pensou ela, “quando meu marido, na ponte de Tchinavar, passar do mundo de ontem para o mundo de amanhã, será que o anjo Asrael lhe impedirá a passagem só porque ele terá o nariz um pouco mais curto na segunda vida do que na primeira?”. Pegou, então, uma navalha; foi até o túmulo do marido; regou-o de lágrimas e aproximou-se para cortar o nariz de zadig, que encontrou deitado no túmulo. Zadig levantou-se, defendendo o nariz com uma das mãos e reprimindo a navalha com a outra.

– Senhora – disse ele –, não brade tanto assim contra a viúva Cosru: o plano de me cortar o nariz é o equivalente ao de desviar um córrego.

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VOLTAIRE. Contos. São Paulo: Nova Cultural, 2002.