quarta-feira, 30 de junho de 2010

QUANDO O SILÊNCIO COBRE O NOME

Rubem Alves

Havia certa vez um homem que dizia o nome de Deus.
Quando o coração lhe doía por uma criança que chorava,
ou um pobre que mendigava,
ele andava até a floresta,
acendia o fogo,
entoava canções
e dizia as palavras.
E Deus o ouviu...

O tempo passou.
Voltou à mesma floresta.
Mas não carregava fogo nas mãos.
Só lhe restou cantar as canções
e dizer as palavras.
E Deus o atendeu ainda assim.

Um tempo mais longo se foi.
Sem fogo nas mãos,
sem força nas pernas,
não alcançou a floresta.
Mas do seu quarto
saíram as mesmas canções
e as mesmas palavras.
E Deus lhe disse que sim...

Chegou a velhice.
Nem floresta nem fogo ou canções...
Restaram as palavras.
E o mesmo milagre, ocorreu.

Por fim
sem fogo ou floresta,
sem canções ou palavras.
Só mesmo o infinito desejo
e o silêncio:
E Deus tudo entendeu...


Estória que me contaram.

***   ***
*

ALVES, Rubem. Pai Nosso: Meditações. São Paulo: CEDI, Ed. Paulinas, 1987.

terça-feira, 29 de junho de 2010

É DE SONHO É DE PÓ...

Isaac Melo


A palavra sertão muitas vezes estar associada à miséria. Mas, o sertão, ao contrário do que se possa imaginar, é um dos lugares em que melhor se percebe a força da vida. A gente sertaneja aprendeu a viver no limite e, se a natureza o priva de algumas coisas, ele constrói outras, e a vida, em vez de desfalecer, segue em seu curso radiante e forte como um pé de aroeira.

“Tudo estar morto” – pensa aquele que pela primeira vez entra no sertão ao olhar a paisagem reduzida a um tom só. Mas, por entre aquele emaranhado de galhos secos, de árvores retorcidas e cascas secas, por debaixo do torrão, pulsa a vida à espera da primeira chuva para tudo se renovar.

Ali o sertanejo vive uma teologia pé-no-chão, tirada da própria vida e encarnada em seu dia a dia. Ali Deus não é uma invenção das religiões, mas aquele que conhece as suas dores, faz parte de suas alegrias e dá sentido às suas vidas. Deus no sertão é o Deus que desce do céu e caminha lado a lado de seu povo, conhece seus anseios, o ampara em suas fraquezas, e o reconduz com mão forte e muito amor quando, às vezes, toma outra direção.

Ai quem me dera que nosso mundo aprendesse com o sertão: a ser generoso quando se tem tão pouco e a fazer da vida um poema de amor e louvação em vez de peso e ilusão.

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*

Autoescola... para charretes. Até que não fui tão mal.
A árvore solitária, por entre seus galhos secos esconde a latência da vida
Nesse quintal quem manda é o peru.
A charrete é usado por quase todo mundo que mora na zona rural
Para amenizar as distâncias do sertão a charrete ainda é uma boa alternativa
Com a charrete vai-se à Igreja, à feira, ao trabalho...
Longas e empoeiradas estradas levam a um povo alegre e gentil
A Igreja é ainda o ponto de encontro e partilha da fé e da vida nessas comunidades
Coisa linda é o nascer do sol no sertão, é como se estivesse brotando do chão.
O sertanejo é um homem de profunda fé
Quando a pastagem do gado acaba, costuma-se cortar palmas para alimentá-los, por isso, ao lado das casas é comum encontrar uma pequena plantação dessas plantas.
Essa linda paineira é um dos espetáculos mais belos do sertão quando está florida.


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P.S.: Imagens registradas, por mim, em algumas comunidades rurais de Palmas de Monte Alto (BA).

segunda-feira, 28 de junho de 2010

AS RAÇAS FORMADORAS DA POPULAÇÃO BRASILEIRA

Profª. Luísa Lessa**
Viajando pelo mundo, em contato com tantas gentes, fica fácil notar como a humanidade é composta de muitas populações (raças) que habitam regiões diferentes e se distinguem pela freqüência com que nelas ocorrem certos traços hereditários. Em cada nação as pessoas possuem aspectos físicos característicos e definidores daqueles que nascem ali. E, embora se observe nos tipos humanos feições físicas similares, não se pode dizer que exista um grupo racialmente puro. Isso porque as populações contemporâneas são o resultado de um prolongado processo de miscigenação, cuja intensidade variou ao longo do tempo.

No Brasil, entre o século XVI ao XVIII, em aproximadamente 15 gerações, consolidou-se a estrutura genética da população brasileira, com o entrecruzamento de africanos, europeus e índios. Ainda, no período colonial, franceses, holandeses e ingleses tentaram se estabelecer em território brasileiro e deixaram alguma contribuição étnica, embora restrita. Assim, de uma mistura de raças, em clima tropical, têm-se os povos do Brasil, uma gente bem diferente daquelas outras do resto do mundo. As três raças básicas formadoras da população brasileira são o negro, o europeu e o índio, em graus muito variáveis de mestiçagem e pureza. A miscigenação no Brasil deu origem a três tipos fundamentais de mestiço: Caboclo = branco + índio; Mulato = negro + branco; Cafuzo = índio + negro.

Indagam-se, agora, quem eram os povos que formaram a população brasileira? Eles eram assim:

a) Brancos – são povos europeus, na maior parte portugueses, que trouxeram um complicado caldeamento de lusitanos, romanos, árabes e negros, que habitaram Portugal. Os demais grupos, vindos em grande número para o Brasil, em diversas épocas -- italianos, espanhóis, alemães, eslavos, sírios -- também tiveram mestiçagem semelhante. A partir de então, a migração tornou-se mais constante. O movimento de portugueses para o Brasil foi relativamente pequeno no século XVI, mas cresceu durante os cem anos seguintes e atingiu cifras expressivas no século XVIII. Embora o Brasil fosse, no período, um domínio de Portugal, esse processo tinha, na realidade, sentido de imigração. Assim, o Brasil é o país de maior população branca do mundo tropical.

b) Negros – povos africanos trazidos para o Brasil como escravos, do século XVI até metade do século XIX (1850). Vieram destinados à lavoura canavieira, à mineração e à lavoura cafeeira. Pertenciam a dois grandes grupos: os sudaneses e os bantos. Os primeiros, geralmente altos e de cultura mais elaborada, foram, sobretudo, para a Bahia. Os bantos, originários de Angola e Moçambique, predominaram na zona da mata nordestina, Rio de Janeiro, Minas Gerais. Por fim, os africanos espalharam-se por todo o território brasileiro, em engenhos de açúcar, fazendas de criação, arraiais de mineração, sítios extrativos, plantações de algodão, fazendas de café e áreas urbanas. Sua presença projetou-se em toda a formação humana e cultural do Brasil, com técnicas de trabalho, música e danças, práticas religiosas, alimentação e vestimentas.

c) Índios - os indígenas brasileiros pertencem aos grupos chamados paleoameríndios, que provavelmente migraram em primeiro lugar para o Novo Mundo. Estavam no estádio cultural neolítico (pedra polida). Agrupam-se em quatro troncos lingüísticos principais: 1 - tupi; 2 - jê ou tapuia; 3 - caraíba ou karib; 4 - aruaque ou nu-aruaque. Há, além disso, pequenos grupos lingüísticos, dispersos entre esses maiores, como os pano, tucano, bororo e nhambiquara. Atualmente os índios acham-se reduzidos a uma população de algumas dezenas de milhares, instalados, sobretudo, nas reservas indígenas da Amazônia, Centro-Oeste e Nordeste.

Os principais grupos de imigrantes no Brasil são portugueses, italianos, espanhóis, alemães e japoneses, que representam mais de oitenta por cento do total. Até o fim do século XX, os portugueses aparecem como grupo dominante, com mais de trinta por cento, o que é natural, dada sua afinidade com a população brasileira. São os italianos, em seguida, o grupo que tem maior participação no processo migratório, com quase trinta por cento do total, concentrados, sobretudo, no estado de São Paulo, onde se encontra a maior colônia italiana do país. Seguem-se os espanhóis, com mais de dez por cento, os alemães, com mais de cinco, e os japoneses, com quase cinco por cento do total de imigrantes. Toda essa gente também participa do processo de mistura racial no Brasil.

Assim, nós brasileiros, segundo o mestre Darcy Ribeiro, “somos um povo em ser, impedido de sê-lo. Um povo mestiço na carne e no espírito, já que aqui a mestiçagem jamais foi crime ou pecado. Nela fomos feitos e ainda continuamos nos fazendo”. Do branco, negro e do índio juntaram-se os mestiços na composição étnica da população brasileira, representados pelos caboclos (descendentes de brancos e ameríndios), mulatos (de brancos e negros) e cafuzos (de negros e ameríndios). E essa mistura de raças resultou, como se vê, a composição do povo brasileiro. E este povo está assim distribuído: predomina no litoral o tipo mulato e, no interior, o branco e vários mestiços. A população é mais índia no Norte, menos branca no Nordeste, mais índia e mais branca no Centro-Oeste e menos negra no Sul. No Sudeste, historicamente a área de maior desenvolvimento, há um pouco de todas as raças. Assim é o país, um mosaico de cor e raça, enchendo os olhos e encantando todos que aqui chegam.

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**LUÍSA GALVÃO LESSA é Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestra em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Ocupa a cadeira de número 34 na Academia Acreana de Letras. É acreana de Tarauacá.

quarta-feira, 23 de junho de 2010

SOBRE CIGARRAS, FORMIGAS E LEÕES

Profª. Inês Lacerda Araújo


Na fábula a cigarra aproveita ao máximo o calor, o dolce far niente, canta até não poder mais, enquanto a formiga não para sua faina. Quando chega o frio, formigas sobrevivem e cigarras padecem.

Em nossa vida fazemos um pouco como uma e como a outra, gozamos e acumulamos. A luta diária pela sobrevivência tem sido acompanhada ao longo de nossa evolução por rituais de comemoração, festas, celebrações.

O que o leão tem a ver com isso? Ele devora e segue sua natureza absolutamente selvagem. É indomável. Ser bom, ser o bonzinho não cria, não produz, não enobrece. "Criar novos valores - disso nem mesmo o leão ainda é capaz: mas criar liberdade para nova criação - disso é capaz a potência do leão", diz Nietzsche em Assim Falou Zaratustra.

Quer dizer, além de diversão e produção, é preciso arte, criação, novos valores, novos modos de ver, de viver. Mexer ainda que um pouco no já feito, nos hábitos, no automatismo a que muitas vezes reduzimos a condição humana.

Heidegger, filósofo alemão que muitas vezes é lembrado como colaborador do regime nazista, felizmente produziu filosofia da melhor qualidade. Admirava Nietzsche, de quem reteve a crítica à filosofia de tipo platônica por esta preconizar a contemplação das formas ideais e essenciais como o único modo de ascender à verdade. Verdade para Nietzsche e Heidegger são deste mundo, produções nossas, algo com que se lida. E o que Heidegger diria sobre cigarras, formigas e leões?

Há existências limitadas a ir de flor em flor, borboleteiam (borboletas, mais um animal para compor a metáfora) que não se detêm em nada, que só se abastecem, e, portanto, nunca estão plenas. Vivem na insatisfação, reclamam, atingem no máximo a profundidade de um espelho d'água. Outros, pelo contrário, são autênticos, corajosos, seguem um rumo, mesmo sabendo ser ele difícil. E, principalmente, ao contrário da cigarra com seu canto vazio, ao contrário da formiga trabalhadora e submissa, sabem enfrentar sua condição de finitude. Sabem que vão morrer. Ser para a morte não significa desistir da vida, e sim penetrar em nossa existência levando em conta a temporalidade. Para isso é preciso mais do que coragem leonina, é preciso ser.

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**INÊS LACERDA ARAÚJO, filósofa, autora, entre outros, de Foucault e a crítica do sujeito (Curitiba: Ed. da UFPR, 2008)

segunda-feira, 21 de junho de 2010

QUEREM CONSERTAR MINHA CALÇADA

Dom Hélder Câmara


Eu nem reparara
que ela estava quebrada.
Acho lindo
o matinho humilde
que ali nasceu.

Como fazer entender
que ele é muito mais belo
e vivo,
que o cimento frio,
que os amigos desejam ofertar?

Se o cimento vencer,
será lápide mortuária,
com inscrição invisível:
"Aqui jaz
o matinho mais vivo,
mais teimoso
e inteligente
de toda a redondeza".


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Foto: @mands

sábado, 19 de junho de 2010

CADA VEZ MAIS SÓS

José Saramago


Acho que todos nós devemos repensar o que andamos aqui a fazer. Bom é que nos divirtamos, que vamos à praia, à festa, ao futebol, esta vida são dois dias, quem vier atrás que feche a porta – mas se não nos decidirmos a olhar o mundo gravemente, com olhos severos e avaliadores, o mais certo é termos apenas um dia para viver, o mais certo é deixarmos a porta aberta para um vazio infinito de morte, escuridão e malogro.


“Cada vez mais sós”, in Deste Mundo e do Outro, Ed. Caminho, 7.ª ed., p. 216 (Selecção de Diego Mesa)

sexta-feira, 18 de junho de 2010

NA CONTRAMÃO COM ALBERTO MUSSA

Anotações do encontro com o escritor Alberto Mussa, ontem (17), no Teatro Paiol, em Curitiba, num evento chamado Paiol Literário*.

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Alberto Mussa não é mais um romancista. Ao lado, de outros poucos, ele tem dado uma nova dimensão ao romance brasileiro. Seus livros vão do universo fantástico ao raciocínio lógico, num estilo que causa impacto, e mesmo estranheza ao mais desavisados. Mas, isso é a porta de entrada para um enredo empolgante e um jeito de contar história como pouco se ver no romance brasileiro.

Mussa, carioca nascido em 1961. Publicou, entre outros, Elegbara, O Enigma de Qaf, O trono da Rainha Jinga, Meu destino é ser onça. Seus livros mereceram prêmios como o da Associação Paulista de Críticos de Artes, por duas vezes, além do Casa de Las Américas e do Machado de Assis, da Biblioteca Nacional. Traduziu diretamente do árabe a coletânea de poesia pré-islâmica Os Poemas Suspensos. Sua obra tem sido estudada na Universidade de Stanford, Califórnia, e foi publicada em Portugal, Itália, Cuba, França, entre outros.

Durante o bate papo, Mussa contou um pouco da sua trajetória literária, da sua relação com os livros desde os tempos de criança até a publicação de seu primeiro livro impulsionado por Antônio Houaiss, com quem trabalhava. Comentou sobre suas críticas à obra de Monteiro Lobato e ao livro Macunaíma de Mário de Andrade, por seu caráter preconceituoso. E nesse sentido, ressaltou que são poucos os autores brasileiros que fogem de um modelo de literatura esteorotipada, sobretudo, em moldes burgueses e cristãos.

Por sua própria definição, Mussa diz que sua literatura é cerebral, isto é, há muita lógica no enredo de seus livros, prova disso é o livro O Movimento Pendular. Para ele a literatura ultrapassa a realidade, pois ela permite viver a experiência de outros. Nesse sentido, ele critica a literatura brasileira por ser muito realista (não que não seja boa), sendo raros os escritores que se detém a produzir literatura fantástica. Quando lhe perguntei que escritores mais lhe causaram impacto ele começou citando São Bernardo de Graciliano Ramos, algumas obras de Borges, etc., e finalizou com as poesias pré-islâmicas.

Alberto Mussa é caso raro na literatura. Enquanto muitos de seus contemporâneos, como assinala Rafael Rodrigues, escrevem um festival de escatologias, uma metralhadora de palavrões e arremedos de pornochanchadas, Mussa vai na contramão e escreve livros baseados em culturas, e nenhum deles tem personagens ou histórias sequer parecidas ou que lembrem as obras que a maioria de seus contemporâneos escrevem.

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* O Paiol Literário é uma realização do jornal O Rascunho e da Fundação Cultural de Curitiba, acontece a cada mês no Teatro Paiol, e conta sempre com a presença de grandes nomes da literatura brasileira atual para um bate papo muito especial.

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O SER HUMANO É AQUILO QUE FALA

Profª. Luísa Lessa**
É fato que a civilização tem dado extraordinária importância à escrita e, muitas vezes, quando nos referimos à linguagem, só pensamos no seu aspecto de representação formal. Esquecemo-nos, maior parte das vezes, que a linguagem é muito mais, é tradução do pensamento, da vida, das classes sociais, no meio físico, de homens e mulheres. Então, é fundamental não perder de vista que ao lado da forma escrita de uma língua, lhe há o lado mais básico, vivo, real, que é a manifestação oral, porque o ser humano é apenas metade de si mesmo; a outra metade é a sua expressão oral.

A língua, na concepção da ciência Sociolingüística, é intrinsecamente heterogênea, múltipla, variável, mutante, instável e sempre em desconstrução e reconstrução. Ao contrário de um produto pronto e acabado, a língua é um processo, um fazer-se permanente e nunca concluído. É uma atividade social, um trabalho coletivo, produzido por todos os seus falantes, cada vez que eles se interagem por meio da fala ou da escrita.

Por isso, nenhuma língua permanece uniforme em todo o seu domínio, ainda num só local apresenta um sem-número de diferenciações de maior ou menor amplitude. Existem tantas variedades lingüísticas quantos grupos sociais que compõem uma comunidade de fala. Essa variação pode acontecer de formas diferentes, até mesmo dentro de um único grupo social, como se tem verificado, aqui no Acre, ao longo dos anos. Há palavras e expressões próprias da cada lugar. As regiões do Acre, Juruá e Purus possuem traços peculiares.

Dessa forma, a variedade de uma língua que um indivíduo usa é determinada por quem ele é. Todo falante aprendeu, tanto a sua língua materna como uma particular variedade da língua de sua comunidade lingüística e essa variedade pode ser diferente em algum ou em todos os níveis de outras variedades da mesma língua, aprendidas por outro falante dessa mesma língua. Tal variedade, identificada segundo essa dimensão, chama-se dialeto.

Os estudos da Dialectologia Brasileira estão a apontar muitas variedades lingüísticas dentro do grande território nacional. Do norte ao sul se fazem presentes o falar amazônico, o nordestino, o baiano, o mineiro, o fluminense, o sulista entre outros que se subdividem, formando uma vasta diversidade.

E dentro dessa imensa diversidade, há duas línguas no Brasil: pois há duas línguas no país: uma que se escreve (e que recebe o nome de “português”); e outra que se fala (e que é tão desprezada que nem tem nome). E é esta última que é a língua materna dos brasileiros; a outra (“o português”) tem de ser aprendida na escola, e a maior parte da população nunca chega a dominá-la adequadamente, isso porque a educação escolar não é uma prioridade nacional e há, em pleno século XXI, milhões de analfabetos.

Por todas as nuances ou matizes que possui uma língua, não há como reproduzi-la, fielmente, na riqueza de sua oralidade. O que acontece é que existem graus de diferença nesta distância entre as duas formas da língua: a escrita e a falada. As diferenças entre essas formas se acentuam dentro de um continuum tipológico, que vai do nível mais informal ao mais formal, passando por graus intermediários. A informalidade consiste em apenas uma das possibilidades de realização, não só da língua falada, como também da língua escrita.

Assim sendo, a linguagem é um fator de discriminação social, pois as diversidades lingüísticas provocam preconceitos dos falantes de uma variante mais elitizada aos falantes de uma variante menos favorecida, ocasionando dificuldades para estes últimos. E, numa sociedade dividida em classes, pode-se identificar a existência de duas variedades lingüísticas, dois “códigos”, determinados pela forma social: o “código elaborado” e o “código restrito”. Estes diferentes códigos resultam da diferença entre os processos de socialização que ocorrem entre as classes sociais.

E, dessa forma, como a língua espelha a cultura e expõe as formas de pensamento, o código lingüístico não apenas reflete a estrutura de relações sociais, mas também a regula. Assim, o ser humano aprende a ver o mundo pelos discursos que assimila e, na maior parte das vezes, reproduz esses discursos em sua fala, segundo a sua realidade social e cultural. E, desse modo, se a consciência é constituída a partir dos discursos assimilados por cada membro de um grupo social e se o ser humano é limitado por relações sociais, resulta não haver uma individualidade de espírito nem uma individualidade discursiva absoluta. Tudo reflete a pessoa integrada ao mundo físico-social em que vive.

Diz-se, finalmente, que o falante não é livre para dizer aquilo que quer, mas é levado, sem que tenha consciência disso, a ocupar seu lugar na escala social, expressando tudo aquilo que é, a partir do lugar que ocupa na escala social. Assim, a sua fala revela, além do seu pensamento, o seu nível cultural, a sua posição social, a sua capacidade de adaptação a certas situações, sua timidez, enfim, a sua forma de ser e ver o mundo.

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**LUÍSA GALVÃO LESSA é Pós-Doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; Doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; Mestra em Letras pela Universidade Federal Fluminense. Ocupa a cadeira de número 34 na Academia Acreana de Letras. É acreana de Tarauacá.

quarta-feira, 16 de junho de 2010

AGORA

Helena Kolody


Se tens um elogio a proferir,
é tempo agora.

Não aguardes que o vento da morte
desvaneça da areia da vida
o nome que o merece.

Se há um agravo pungente a perdoar,
é tempo, é hora.

O mais fundo rancor não resiste
a um apelo de braços abertos.

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KOLODY, Helena. Sinfonia da Vida. (Organização: Tereza Hatue de Rezende). Curitiba: Editora Letraviva, 1997.

terça-feira, 15 de junho de 2010

FELICIDADE POR DECRETO

Profª. Inês Lacerda Araújo


Há um movimento na Câmara dos Deputados em Brasília para aprovar legislação sobre o direito à felicidade como dever do estado.

Ora, nem os filósofos têm uma noção aproximada ou unânime sobre o que seja felicidade, nem se a cada pessoa do mundo for perguntado sobre o que entendem por felicidade daria uma resposta satisfatória para si e para os demais.

Pode-se chegar a algumas definições, nas quais certamente entram os conceitos de bem-estar, de saúde, de realização profissional, seguir uma vocação, gostar daquilo que faz, paz de consciência, estabilidade emocional, sólidos laços de família e de amizade. É provável que incluam a noção de que as alegrias são passageiras e de que a felicidade é duradoura

Nada disso, a meu ver, pode ser garantido por legislação!

O estado provedor vem se transformando em estado arrecadador. Os brasileiros trabalham mais de três meses ao ano apenas para pagar impostos e recebem muito pouco em retorno, como todos sabem.

Imagine a burocracia para fazer funcionar o decreto da felicidade. Quem cuidará disso? Uma secretaria especial da presidência da república? As assembléias estaduais teriam um auditor para medir o grau de felicidade de seus diletos eleitores? Ou quem sabe a felicidade seria monitorada a partir das câmaras de vereadores ou pelas prefeituras, e haveria em cada município um responsável pela felicidade de seus cidadãos.

Cartazes seria espalhados pela cidade, dentro dos ônibus, nos espaços públicos: "Todos têm direito à felicidade"; "A felicidade ao seu alcance"; "Programa 'Cidadão feliz'", e outras sandices do gênero.

Vejamos o que os filósofos dizem. A boa vida, a vida conforme a virtude, o equilíbrio traz felicidade, segundo Aristóteles. Para isso é preciso esforço, hábitos que vêm da educação.

Para Sêneca, basta a tranquilidade da alma, "caminhar numa conduta sempre igual e firme, sem se afastar da calma, sem se exaltar, sem se deprimir".

Sobre a busca da felicidade, diz Sto Agostinho: "Como procurar a vida feliz? Não a alcançarei enquanto não exclamar: 'Basta, ei-la'. Mas onde poderei dizer estas palavras? Como procurar essa felicidade?... Feliz é aquela vida que todos desejam, não há absolutamente ninguém que não a queira? Onde a conheceram para assim a desejarem? Que possuímos tal desejo, é certo. Agora, o modo é que eu não sei. Há uma maneira de ser feliz, quando cada um possui a felicidade em concreto. Mesmo aqueles que não têm a felicidade e nem sua esperança, devem experimentá-la, pois, do contrário não desejariam ser felizes".


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**INÊS LACERDA ARAÚJO, filósofa, autora, entre outros, de Foucault e a crítica do sujeito (Curitiba: Ed. da UFPR, 2008)

quinta-feira, 10 de junho de 2010

ESTADO DE SÍTIO

Albert Camus

(A Peste aproximou-se, docemente, de Diogo.
Somente o corpo de Vitória os separa)

A PESTE
Então? Renunciais? (Diogo, com desespero, olha o corpo de Vitória.). Não tens força. Teus olhos estão perdidos. Quanto a mim, tenho o olhar fixo do poder.

DIOGO (depois de um silêncio)
Deixa-a viver e mata-me.

A PESTE
Como?

DIOGO
Proponho-te uma troca.

A PESTE
Que troca?

DIOGO
Quero morrer em seu lugar.

A PESTE
Eis uma dessas idéias que sempre temos, quando nos sentimos cansados. Vamos, não é agradável morrer e o pior já está feito para ela. Fiquemos nisso!

DIOGO
É uma idéia que se tem, quando se é o mais forte!

A PESTE
Olha-me: eu sou a própria força!

DIOGO
Despe teu uniforme.

A PESTE
Estás louco!

DIOGO
Despe-te! Quando os homens da força despem seu uniforme, não são nada belos a qualquer olhar!

A PESTE
Talvez. Mas sua força está em terem inventado o uniforme!

DIOGO
A minha está em recusá-lo. Mantenho minha proposta.

A PESTE
Reflete, ao menos. A vida tem coisas boas.

DIOGO
Minha vida não é nada. O que conta são as razões de minha vida. Não sou um cão.

A PESTE
Então o primeiro cigarro não tem importância alguma? O odor da poeira, ao meio-dia, sobre os aterros, as chuvas da noite, a mulher ainda desconhecida, o último copo de vinho... então tudo isso não é nada?

DIOGO
É alguma coisa. Mas esta viverá melhor do que eu!

A PESTE
Não, se renunciares a te ocupar dos outros.

DIOGO
No caminho em que estou, nunca podemos parar, mesmo que o desejemos. Não te pouparei!

A PESTE (mudando de tom)
Escuta. Se me ofereces tua vida, em troca da desta mulher, sou obrigado a aceitar - e ela viverá. Mas eu te proponho um outro ajuste. Dou-te a vida desta mulher e deixarei que ambos fujam, contanto que eu fique autorizado a cuidar desta cidade.

DIOGO
Não. Conheço meus poderes.

A PESTE
Neste caso, serei franco contigo. Preciso ser o senhor de tudo - ou, então, não o serei de nada. Se tu me escapares, a cidade me escapará. É a regra. Uma velha regra, que não sei de onde vem.

DIOGO
Mas eu sei! Vem do mais fundo das idades, é maior do que tu, mais alta do que teus patíbulos: é a regra da natureza. Nós vencemos.

A PESTE
Ainda não! Tenho aí este corpo - meu refém. E o refém é o meu último triunfo. Olha-a. Se alguma mulher tem o rosto da vida, é esta aqui. Merece viver e queres fazê-la viver. Quanto a mim, sou constrangido a entregá-la a ti. Mas pode ser em troca de tua própria vida, ou em troca da liberdade desta cidade. Escolhe.

(p. 132-1135)

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Não deixe de ler:
CAMUS, Albert. Estado de Sítio / O Estrangeriro. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

terça-feira, 8 de junho de 2010

A SEXUALIDADE COMO DISPOSITIVO HISTÓRICO PARA FOUCAULT

Profª. Inês Lacerda Araújo


A subjetividade na modernidade ocidental se constitui em larga escala pelo saber de si, pela vontade de saber. Essa vontade de saber é conduzida pelo dispositivo histórico de sexualidade. Esta não é uma pulsão, uma realidade profunda, subterrânea, mas uma rede de estímulo a prazeres, de incitação dos corpos, de intervenções médicas, de discursos, de práticas de normalização que se apoiam uns nos outros e são conduzidos por estratégias de saber e poder. No lugar da sexualidade/pulsão, o biopoder cria uma sexualidade na qual se pode e deve intervir, que é induzida por discursos produzidos em geral na área médica (psiquiatria) e na área da psicanálise. O poder, tal como Foucault o analisa, produz discursos de verdade pelos quais "somos julgados, condenados, classificados, obrigados a tarefas, destinados a certa maneira de viver ou a uma certa maneira de morrer". As ciências da vida, as ciências humanas, as ciências "cartográficas", a estatística, permitem dominar e controlar a vida, a saúde, a sexualidade. O biopoder se constituiu no século 19 em função da necessidade política de moldar e conservar a vida através de tecnologias que criam algo novo para gerenciar, a população; esta é governável, pode ser transformada e regulada. Ao biopoder importam taxa de natalidade, taxa de mortalidade, modos e níveis de reprodução, a fecundidade. O que exige a formação de saberes rigorosos e um controle político cerrado. É preciso examinar, analisar, cuidar e estabelecer os custos das doenças que incidem sobre a população. É nesse campo que o dispositivo de sexualidade tem a função de regular o sexo, restrito ao leito conjugal, vigiado pela família, que, por sua vez é controlada pelos mecanismos do biopoder. Vem daí a novidade na história ocidental, considerar que nossa verdade está escondida num ponto de difícil acesso, a sexualidade, que pode e/ou precisa ser dita, confessada. Por isso a sexualidade é aquilo de que mais se fala, para o ouvido "certo", na hora "certa". A tese de Foucault é a de que há muito mais uma "explosão discursiva" do que repressão. O próprio fato de esconder, de velar, implica revelá-la, tanto faz se é um especialista ou o amigo(a), namorado (a). Sequer percebemos que isso nos prende, nos controla ao invés de libertar. Seríamos muito mais livres fora desse esquema da vontade de saber, novos prazeres, novos estilos de vida nos tornariam mais criativos, menos sujeitos ao controle pelo exame do desejo, mais abertos para o prazer.

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**INÊS LACERDA ARAÚJO, filósofa, autora, entre outros, de Foucault e a crítica do sujeito (Curitiba: Ed. da UFPR, 2008)

quinta-feira, 3 de junho de 2010

TELEVISÃO ÀS AVESSAS

Robélia Fernandes de Souza
da Academia Acreana de Letras

Na televisão
Uma moça me convida
A comprar sabão
E outras pessoas
Dirigem carros
Bebem cerveja
E dançam e cantam
Abraçam-se, beijam-se
E fazem pouco
Da minha inércia
E solidão

Vampiro dissimulado
Suga de mim a emoção
Que alimenta os personagens
Toma meu cérebro
Filtra meus pensamentos
Amordaça
Neutraliza
Se faz a vida
Me faz a máquina
Diante dela
Me faço tela
Ela é quem vive
Eu sou imagem

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SOUZA, Robélia Fernandes de. Asa de vida. Rio de Janeiro: Oficina do Livro Ed., 1992