quarta-feira, 31 de julho de 2013

A MULHER DE CÓCORAS

Jairo Nolasco


Ao chegar a uma determinada repartição pública  vi uma mulher de cócoras. Aliás, ela estava de cócoras. No corredor e de cócoras. Alguns transeuntes a olhavam com reprovação, outros, covardemente, a ignoravam talvez por que ela só estava lá, assim de cócoras. E eu que não tinha nada a ver com isso e nem com a vida alheia notei que estava de cócoras. E no corredor.

Quem seria? Qual sua história? De rosto sofrido e cabelo rebelde, sem pintura e chapinha, aparentava mais anos do que a cronologia da certidão indicaria. Mãe de alguém. Talvez até avó e estava lá de cócoras. Possivelmente veio da zona rural a procura de atendimento no serviço público. Notei que na sala tinha um aviso dizendo que desrespeitar o servidor público no seu local de trabalho é crime e etc e tal. Como não havia ainda sido atendida e não podia reclamar sem cometer um crime, talvez tenha se encaminhado para o corredor e lá ficou de cócoras.

Há quanto tempo estava lá de cócoras? Não sabia ela que a Coreia do Norte, hoje, atacou uma ilha pertencente a Coreia do Sul e matou dois soldados sul-coreanos e que pode ser início de uma grande guerra? Que muita gente está perdendo o sono enquanto aguarda o próximo mês para saber quem vai fazer parte do novo secretariado do novo governo? Que o nosso prefeito declarou que será o melhor de todos os tempos?  Isso tudo acontecendo e aquela mulher ali de cócoras, sem milho, sem pombos, sem praça e bancos?

Nem ria e nem demonstrava irritação. Só estava ali de cócoras, impassível. Tive inveja daquela mulher. Não por que ela era mulher,  pobre e feia. Tive inveja por que ela era livre para ficar ali de cócoras. Eu nunca poderia ficar de cócoras em um corredor de uma repartição pública. Logo apareceria alguém para me demover da ideia e se insistisse perderia o emprego e a família. Os amigos teriam pena de mim e os conhecidos desviariam o olhar. "Como um cara desse não tem vergonha de ficar de cócoras no corredor?" _  diriam na mesa de bar quando eu passasse, inocente, do outro lado da rua.

Enquanto a ignoram, eu a respeito. Estava ali de cócoras a desafiar  nossa hipocrisia e nossas etiquetas de regras de comportamentos sociais de homens fracos de causar ânsia de vômitos no enfermo Nietzsche. Que se danem os olhares de reprovação dessas pessoas afrescalhadas. Ela estava se sentindo em casa e o seu mundo é o que importava. Estava de cócoras, mas não de joelhos a implorar reconhecimento. Aquela mulher de  fenótipo tosco me atormentou.

Sorte de Drummond que tinha uma simples pedra no caminho. Eu tenho uma mulher de cócoras e minhas retinas nem estão ainda assim tão fadigadas pelo tempo. Mas minhas pernas, sim, cansaram de ficar paradas ali vendo aquela mulher de cócoras enquanto meu tempo de homem moderno urgia. Fiz o que tinha de fazer e quando retornei para rever a mulher de cócoras, ela já tinha deixado o local. Deve ter se cansado de ficar ali servindo de escárnio ou foi convidada a se retirar por alguns sapientes funcionários públicos que devem ter descoberto uma lei que diz que ficar de cócoras no corredor de uma repartição pública é crime, etc e tal...

E ela, a mulher que estava de cócoras,  foi embora para qualquer dia retornar e ficar de novo de cócoras. Talvez o mundo nem fosse melhor se em cada esquina tivesse uma mulher de cócoras, mas  cada homem livre devia ter o direito de ver pelo menos uma vez na vida uma mulher feia e tosca de cócoras no corredor a espera de qualquer coisa, menos da compreensão alheia. A essa hora o Japão já deve ter ter declarado o seu apoio à Coreia do Sul. A guerra se aproxima e aquela mulher continua de cócoras. Terei pesadelo à noite.



> Crônica publicada em 23 de novembro de 2010 no Jurubeba Juruaensis. Um dos mais belos textos do nosso amigo da terra dos Náuas, Jairo Nolasco.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

TIREM AS MÁSCARAS!

Profa. Inês Lacerda Araújo 


É lamentável que os protestos venham degenerando em bagunça, violência, ataques ao patrimônio público e privado.

Como seria a vida em sociedade sem bancos funcionado, sem sinais de trânsito, com lojas depredadas?

Por que até agora a polícia não prendeu os que merecem, interrogou-os para saber qual é a intenção dos vândalos, de onde eles vêm, quem são esses mascarados covardes, por que não pagam pelos seus crimes?

Será que não perceberam (ou perceberam e são de alguma forma instigados por algum tipo de autoridade) que infiltrados nos movimentos legítimos provocam resultado oposto, isto é, a perda de apoio da população?

É urgente criar um movimento que os denuncie, arrancar a máscara, inclusive a do famoso sorriso, que já cansou, e mostrar a cara.

Mostre a sua cara ou caia fora, essa deveria ser a palavra de ordem!

***

E que dizer dos protestos durante e em meio a visita do papa Francisco?

Falta de respeito pelo outro, pelas posturas e crenças de cada religião, por movimentos que engajam multidões e têm tradição internacional. 

Quando há discordância, ela pode e deve ficar explícita por meios que possibilitem responder, argumentar e não forçar a barra!

A "Marcha das Vadias" tem hora e lugar próprios para surtir o efeito desejado, que é o protesto das minorias sexuais, a denúncia da violência contra as mulheres, o direito de se vestir conforme seu gosto e não segundo normas sociais padronizadas.

Até aqui, tudo bem.

Mas promover a destruição pública de estátuas choca, revolta, pois é em ambientes
Ridículos!
de fé que elas são expostas. Isso lembra fanáticos de certos cultos que invadem igrejas para quebrar imagens.

Qual é o efeito? Nunca o de crítica social, moral e ética, e sim o efeito deletério da falta de respeito pelo outro, sua crença, sua religião, seus valores.

Protesto justo é aquele em que se defende um direito, um valor, um modo de vida quando atacado.

Protesto justo é aquele em que se denuncia governantes relapsos, corruptos, acomodados no conforto do poder.

Protesto justo é aquele em que se luta por representação, por direitos legítimos que a maioria, habitualmente silenciosa, reivindica. A voz da sociedade precisa e deve ser ouvida.

***


Denunciem os covardes baderneiros, pois, aparentemente, a polícia "protege" o protesto pacífico e só aparece após o fim do vandalismo. Esquisito, não?



INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

sábado, 27 de julho de 2013

JOSÉ SARAMAGO sobre a democracia

“a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada...”
"Tudo se discute neste mundo, menos uma única coisa: a democracia. Ela está aí, como se fosse uma espécie de santa no altar, de quem já não se espera milagres, mas que está aí como referência. E não se repara que a democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada, condicionada, amputada. Porque o poder do cidadão, o poder de cada um de nós, limita-se, na esfera política, a tirar um governo de que não se gosta e a pôr outro de que talvez venha a gostar. Nada mais. Mas as grandes decisões são tomadas em uma outra grande esfera e todos sabemos qual é. As grandes organizações financeiras internacionais, os FMIs, a Organização Mundial do Comércio, os bancos mundiais. Nenhum desses organismos é democrático. E, portanto, como falar em democracia se aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos democraticamente pelo povo? Quem é que escolhe os representantes dos países nessas organizações? Os respectivos povos? Não! Onde está então a democracia?"

José Saramago (1922-2010)

quinta-feira, 25 de julho de 2013

EMILY DICKINSON

Seu eu puder evitar que um coração se parta
Não viverei em vão.
Seu eu puder suavizar a aflição de uma vida
Aplacar uma dor,

Ou ajudar um frágil passarinho
A retornar ao ninho,
Não viverei em vão.

---

Reflito, a Terra é pequena
A angústia – absoluta –
Muitos os males,
Mas o que importa?

Penso, podemos morrer.
A melhor vitalidade
Acaba por perecer.
Mas o que importa?

Cogito que lá no céu
– Não sei como – deve haver
Alguma nova equação.
Mas, e então?


DICKINSON, Emily. Poemas. Tradução Idelma Ribeiro de Faria. São Paulo: Hucitec, 1986. p.25, 73

> Neste blog, acesse aqui outros poemas de Emily Dickinson.

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Série HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU

A SAGA DE PAULO E DONZINHA

José Augusto de Castro e Costa


As cicatrizes decorrentes  da  perda irreparável da esposa ainda  incomodavam  o jovem,  nos seus,  incompletos, vinte e cinco anos, de tal modo que ele a nada conseguia adaptar-se. O casal havia experimentado uma breve convivência, tumultuada, em vista  da forte objeção dos familiares da moça, mesmo após o nascimento do único filho. Logo a seguir, uma enfermidade incurável, desestabilizara  o que já vinha  se desgastando.

Em busca de melhores  recursos para o tratamento médico da esposa, Paulo desfizera-se  de sua única propriedade e deslocara-se para  a capital paraense. Ao aproximar-se da cidade de Breves, aquela enfermidade da esposa consumara-se  em  tragédia  para o jovem, que, sozinho, tivera  de tomar todas as providências relativas ao funeral de seu ente querido, em terra estranha, por completo, cujo jazigo  dificilmente poderia  vir a ser visitado  por ele ou  por algum outro familiar, dado ao isolamento de sua localização.  Após as devidas soluções ante o impasse, em menos de  vinte e quatro horas, Paulo seguira  no mesmo barco para Belém, onde permanecera  por curto período, tentando colocar  suas ideias em ordem, hospedando-se  em república para  rapazes.

Ao retornar a Manaus, o jovem, no alambrado do navio, ia observando a travessia serena da Baía de Guajará e o estuário do rio Tocantins, aproximando-se da Ilha de Marajó, seguindo pelos braços de rio, os populares  paranás, que a separam do continente, formando um verdadeiro  labirinto  de águas e de matas, que se fecham num curto círculo, sem horizontes. Navegavam no Estreito de Breves.

O vapor, rompendo velozmente por dentro da enorme floresta, quase a roçar-lhe os galhos, não poderia  evitar  que o pensamento do jovem voltasse para sua esposa, cujo corpo ficara para sempre naquele município paraense. Depois de muitas horas dessa extravagante navegação silvestre, após passar por Óbidos, o navio atingira  o Rio-Mar, que se expandia e se bifurcava por entre grandes ilhas, onde até hoje  se destaca a de Parintins, já  em águas amazonenses.

Ao encontrar-se em Manaus, por uma razão ou por outra,  Paulo não conseguira estímulo para  fixar-se  em nenhuma atividade que se lhe apresentara, motivo pelo qual entrara  em sério conflito com seu  tio Custódio, que o havia criado desde os dez anos de idade, por haver ficado órfão de  dona  Adalgiza,  sua genitora.

Corria o mês de janeiro de 1928, quando  Paulino de Brito, o esposo de uma prima sua,  fora nomeado Juiz de Direito em Rio Branco  e, ao tomar conhecimento da  situação por qual passava  o jovem Paulo,  não só o convidara  como  o  persuadira  a acompanhá-lo. Em termos de distração, a  viagem à capital acreana  contava  um bom número de rapazes, seus conhecidos, tanto amazonenses quanto paraenses, destacando-se o advogado, jornalista e caricaturista Garibaldi Brasil, que com  o jovem  dividira hospedagem na pensão paraense, Aníbal Paiva, e outros, entre os quais, o poeta cearense Quintino Cunha, que ia para Lábrea, e  ao chegar à foz do caudaloso Rio  Negro, de águas límpidas porém escuras, que não se misturam  às águas  amarelas e turvas do Solimões, compôs a célebre poesia Encontro das Águas:

“Vê bem, Maria, aqui se cruzam:  este
 È o Rio Negro, aquele  é o Solimões.
Vê bem como este contra aquele investe,
Como a saudade com as recordações.
Olha esta água – é negra   como tinta
Posta na mão é alva que faz gosto.
Dar por visto o nanquim com que se pinta
Nos olhas  a paisagem de um desgosto”.
Que profundeza extraordinária, imensa.
Que profundeza mais que desconforme!
Este navio é uma estrela suspensa
Neste céu d’água, brutalmente enorme.
O barco Guanabara, com seus largos corredores, para onde abriam os camarotes, que se estendiam em dupla fila central até um vasto  refeitório, tomara o rumo do rio Solimões e subira-o até à segunda foz, entrando à esquerda no  não menos lendário rio Purus, cujo canal era assinalado por uma linha de espuma e de paus que desciam de bubuia, formando  um rebojo de troncos, o que constituía um  perigo fatal, que requeria  grande atenção do prático.


Todo aquele cenário era, de certo modo, novidade para muitos passageiros. O vapor  aportara  brevemente, para carga e descarga, à vila Floriano Peixoto, antiga Antimarí, na foz do rio do mesmo nome, ainda no estado do Amazonas, para, logo a seguir, alcançar as águas do rio Acre, chegando, algum tempo  depois,  a Porto Acre.

Numa bela manhã de fevereiro de 1928, um  domingo de carnaval, o navio Guanabara, saudando  o  povo acreano, fazia soar apitos  característicos e contínuos, anunciando sua  aproximação  festiva  ao porto de Rio Branco.

Governava o Acre, por essa época, o advogado Hugo Ribeiro Carneiro, que vinha-se notabilizando pela modernização que impusera àquele Território, proporcionando novo visual  urbanístico a Rio Branco  e estampando  alegria fulgurante em seu povo, que procurava  manter sempre ativa  a sua vida social, cultural e esportiva.

Logo à chegada, os visitantes foram convidados para abrilhantarem o Baile Carnavalesco da Sociedade Recreativa TENTAMEN, clube elite da cidade, que seria levado a efeito à noite daquele mesmo domingo, abrindo os festejos de Momo.

Conforme programado, à hora marcada  os rapazes compareceram  ao clube, onde foram  calorosamente  recepcionados pela diretoria e acomodados  em local de destaque, de onde  puderam  apreciar, encantados,  o ambiente do hig-life da cidade, as elegantes fantasias femininas e masculinas, as mimosas senhorinhas em suas poses encantadoras, seus sorrisos fascinantes, suas jovialidades e meiguices.

Não demorou muito para Paulo e Donzinha descobrirem-se, acenderem a fogueira de seus olhares, chegarem-se o mais próximo possível e, estimulados pelo embalo do maxixe e  da marchinha, estabelecerem um certo diálogo que perduraria  por cinquenta e nove anos. Para o desenvolvimento desse princípio dominante e sua concretização, porém, fizera-se necessário algumas providências ao encargo da moça. Por cultivar estreito relacionamento com a família do governador e dotar-se de espírito diligente, Donzinha  condicionou  seu futuro casamento à oferta de um emprego para seu noivo, o qual, em decorrência, fora nomeado, em abril de 1928, Comissário Interino da Delegacia  Auxiliar de Polícia do Território.

Três meses depois, o jovem fora transferido para o gabinete do governador, sendo, em março de 1929, convidado a preencher uma vaga no quadro de pessoal do Ministério da Fazenda, no qual  se estabilizaria, fazendo carreira até  aposentar-se, desenvolvendo suas atividades no Acre e no Amazonas. Tal posto estava vago por conta da peculiaridade de seu exercício, que deveria ser desenvolvido  em locais de difícil acesso e aguda insalubridade. Consta que o primeiro encargo que lhe fora  atribuído, logo após o casamento, teria sido o de responsável pelo Posto de Registro Fiscal Federal do Amônea, na foz do rio Breu, na fronteira do  Peru, distante mais de duzentos quilômetros de Cruzeiro do Sul, em linha reta.

A viagem constituíra-se numa verdadeira odisseia, pelo fato de somente poder ser efetuada por via fluvial, de Rio Branco a Manaus, onde, em data incerta, seria tomado um outro navio para subir o  Solimões, daí entrando no rio Juruá, para  alcançar  Cruzeiro do Sul. Dessa cidade ao  Amônea,  Paulo e Donzinha, em vista da vazante do rio, serviram-se de uma  canoa, tripulada por um elemento a utilizar um varejão, próprio para impulsionar  a condução  rio acima, o que contribuíra  para alongar  a viagem em mais de três  meses, da origem ao destino.

Em 1931, Paulo fora  autorizado a transferir o Posto Fiscal do Amônea para Feijó, então município de Tarauacá, de onde suas atividades passaram a abranger as áreas dos rios Juruá, Jordão e Envira, compreendendo Cruzeiro do Sul, Tarauacá (ex-Vila  Seabra) e Feijó.

Anos e anos naquele interior amazônico, enquanto Paulo  ocupava-se em fiscalizar a circulação dos produtos extrativistas  e outras tarefas aduaneiras, Donzinha tratava da educação das crianças, lecionando letras e canto orfeônico, formando coral de várias vozes, com quem ensaiava, já que possuía conhecimentos musicais de violão, bandolim e órgão harmônico (quando alguma capela o possuía). Nasce daí o forte vínculo com várias famílias tradicionais da região, tais como a de Zeca Rabelo, dona Maria Mesquita, Dr. Gualther Batista, Dr. José Potiguara da Frota e Silva, Dr. Dedé, Cambeiro, Roque, Cunha, Angelo Silveira, Manuel Lino, Quirino Nobre,  Mâncio Lima, e outros e outros.

Vinte anos depois estavam os dois de retorno a Rio Branco, após terem feito histórias no Juruá, Envira,  Purus,  Antimarí  e em Porto Acre.

Na capital acreana, além dos serviços alfandegários, Paulo  dedicara-se ao esporte, tendo colaborado para a fundação da Sociedade Desportiva Vasco da Gama, chegando a ser um de seus primeiros presidentes, quando Donzinha, sempre no afã de educadora, depois de lecionar no Grupo Escolar 7 de Setembro, oferecera todo seu empenho na direção do Educandário Santa Margarida, por um longo período de onze anos, até a partida definitiva para Manaus, acompanhando Paulo, que para aquela cidade  havia sido transferido.

Na capital amazonense Donzinha  passara a exercer atividades na direção do Educandário Gustavo Capanema, paralelamente ao seu trabalho no IPASE, enquanto Paulo, além de Fiscal da Alfândega, desempenhava funções no Lions Clube de Manaus-Centro, o que, por destacar-se no desenvolvimento  de  projetos de bem-estar social, fora homenageado  post mortem, pela Prefeitura Municipal de Manaus, emprestando seu nome  a  uma  rua no bairro Japiim.

Por essas e outras é que Paulo sempre buscava os versos de Quintino Cunha:

“Se estes dois rios fôssemos, Maria,
Todas as vezes que nos encontramos,
Que Amazonas de amor não sairia
De mim,  de ti,  de nós que nos amamos”!...


De salientar que Donzinha, ou melhor, Maria Barbosa  e Paulo de Castro e Costa eram amazonenses de nascimento, porém, por acentuado amor, tinham  historicamente, e com muito orgulho, os corações acreanos.


* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, está escrevendo sua nova série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.
 
> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.

terça-feira, 23 de julho de 2013

DISCIPLINA E SEGURANÇA EM MICHEL FOUCAULT: A NORMALIZAÇÃO E A REGULAÇÃO DA DELINQUÊNCIA

Para quem deseja aprofundar mais acerca da questão da delinquência, sobretudo nesse tempo em que se “discute” a redução da menoridade penal, recomendo a leitura deste artigo do prof. Cesar Candiotto, do programa de mestrado e doutorado da PUCPR.


No presente artigo, estuda-se como as técnicas de poder disciplinares apresentadas por Foucault em Vigiar e punir (1975) se relacionam com os dispositivos de segurança, analisados em Segurança, território, população (1978). A tese de Foucault em 1975 é que a circularidade da delinquência é produzida e alimentada pelas práticas disciplinares; mas somente a partir de 1978, no curso Segurança, território, população, pode-se deduzir conceitualmente que aquela circularidade corresponde a uma maneira de governar que permite e tolera a delinquência em sua realidade e em seu curso para, posteriormente, regulá-la mediante o uso de dispositivos de segurança que reforçam o poder do Estado. A conclusão é que, neste caso, os dispositivos de segurança não substituem as disciplinas, mas as reconfiguram a partir de uma nova economia do poder.

UMA GENEALOGIA DA PUNIÇÃO NO OCIDENTE

No conhecido livro Vigiar e punir (1975/1987), Michel Foucault apresentou muito mais do que a história do nascimento da prisão como instituição privilegiada para o regime das penas na modernidade. Está em jogo nesse livro, sobretudo, a genealogia das tecnologias de poder que atuaram em boa parte das instituições modernas.

Ao optar pela estratégia filosófica da genealogia, Foucault não pretende buscar as origens de um objeto já dado no real. Se tomarmos como exemplo as tecnologias punitivas, o genealogista vai sugerir que nem sempre elas têm sido as mesmas no Ocidente: essas tecnologias nascem, funcionam, se transformam, são reabsorvidas por outras ou simplesmente desaparecem. Convém então datar sua emergência, observar seu modo de atuação e apontar suas modificações. Essa é uma das razões pelas quais Foucault almeja voltar-se ao passado para "fazer a história do presente" (Foucault, 1975/1987, p. 29). Jamais se trataria de reduzir o passado ao presente, mas de diagnosticar o presente a partir daquilo que o afasta do passado e do qual, contudo, traz marcas significativas.

Foucault, genealogista, quer mostrar que muito daquilo que constitui uma obviedade para os modernos nem sempre foi tão óbvio para os medievais e para os antigos. Caso exemplar é o das técnicas de punição privilegiadas por determinadas sociedades. Há sociedades em meio às quais a exclusão, o exílio e a rejeição de alguém para fora de um grupo ou de um corpo social constituem as punições preferíveis (os gregos antigos); há outras que privilegiam a retribuição pelo dano provocado, a compensação do delito pela obrigação financeira (as sociedades germânicas); outras ainda priorizam o suplício, a tortura, a marca do poder no corpo do condenado (as sociedades ocidentais no final da Idade Média); enfim, há aquelas sociedades que têm como tática punitiva principal o aprisionamento.

Foucault entende que a obviedade dessa última técnica, cujo início remonta o final do século XVIII, ainda permanece em nossa sociedade. Em Vigiar e punir pretende-se provocar um estranhamento diante dela, indicar sua descontinuidade em relação ao seu passado recente, de modo que nosso imaginário quase naturalizado a respeito de sua atual evidência jamais permaneça tão evidente.

Como ocorreu a passagem do suplício gritante das sociedades ocidentais do final da Idade Média para o silenciamento atual da reclusão? Por que o aprisionamento é ainda considerado a técnica punitiva privilegiada em nossa sociedade? De onde vem essa estranha prática e esse curioso projeto de aprisionar para corrigir? Em que aspecto as tecnologias empregadas no sistema prisional não estão tão distantes daquelas utilizadas nas demais instituições sociais? Essas e outras questões são abordadas no antológico livro de Foucault.

Em Vigiar e punir pergunta-se por que a prisão se impôs no Ocidente como forma de punição sobre outras já existentes, caso do suplício no direito monárquico clássico do século XVII e da primeira metade do século XVIII ou das diversas modalidades de reparações propostas pelos juristas reformadores da segunda metade do século XVIII.

1. Grosso modo, no direito monárquico clássico a punição inscreve-se em uma cerimônia de soberania. Até o final da Idade Média, quando um crime é cometido contra alguém privado, o lesado é o próprio Estado, mormente materializado no corpo do rei. Esse é investido de poder divino, razão pela qual o crime tem um caráter moral e religioso, associado ao sacrilégio. A punição para o sacrilégio é o suplício público e teatral que representa, ao mesmo tempo, a verdade do crime cometido e a superioridade da força real. Superioridade frágil, porém. Seu limite é o corpo torturado. A cada tortura acompanhada de execução pública a soberania real é desafiada, de onde a necessidade da reafirmação intermitente de seu poder. A lei exige que, antes da execução, o réu confesse a verdade em público em meio à tortura, fato que provocava na multidão tanto o sentimento de medo - reação que constitui o próprio objetivo desse gesto - quanto de revolta - reação não desejada pelo soberano. Nesse caso, o criminoso poderia ser tratado como herói, enquanto que a autoridade soberana geralmente era desmoralizada.

2. No final do século XVIII ocorrem transformações significativas na teoria do direito penal. O ritual desumanizador do suplício é denunciado, ao mesmo tempo em que se objetiva a reformulação teórica da natureza do crime, das práticas de punição e dos saberes sobre a alma criminosa. Reformadores como Beccaria, Bentham e Brissot distinguem infração penal e falta moral. A falta moral constitui o desvio da lei natural, moral ou religiosa; a infração penal designa a ruptura com a lei civil, explicitamente estabelecida pelo poder legislativo. Poderão ser punidas somente as condutas efetivamente definidas como repreensíveis à lei, a saber, tudo aquilo considerado nocivo à sociedade. O dano social é a única natureza do crime, sendo dela subtraídas as ideias de pecado ou sacrilégio que persistiam até o final da Idade Média. O criminoso deixa de ser o sacrílego para designar o inimigo interno que rompe com o pacto social. O regime das penas não visa à execução de uma vingança ou a redenção de um pecado; ele almeja a utilidade social pela reparação do dano causado. A penalidade cumpre com sua função de exemplaridade de modo a evitar infrações semelhantes. Ela utiliza-se mais da representação causada pela pena do que pela marca deixada no corpo, como ocorria nos rituais de suplício. Inscreve-se na alma e não mais no corpo (Foucault, 1987, p. 84).

Os reformistas propõem como primeira maneira de punir o conjunto constituído pela deportação, pelo isolamento e pelo ostracismo; depois vem o isolamento do indivíduo no interior do corpo social por meio da humilhação pública e do desprezo; segue a condenação aos trabalhos forçados; finalmente, a fim de evitar que o crime seja novamente cometido pelo condenado ou por outrem, o indivíduo pode vir a ser punido pela lei de Talião. Vale lembrar que nesse regime de penas a prisão sequer é mencionada.

3. No final do século XVIII e início do século XIX, no momento da Restauração na França e da Santa Aliança na Europa (por volta de 1820), a prisão impõe-se como principal mecanismo punitivo sobre as demais formas de punir. Seu sucesso não depende de sua utilidade social, no sentido de que ela protege a sociedade contra os malfeitores ou de que atua favoravelmente na reintegração social dos indivíduos. Do ponto de vista jurídico-legal, a prisão é designada como detenção, privação de liberdade, meio de reparação a um dano causado à sociedade.

Mas, para Foucault, a prisão é também o lugar de um suplemento de poder que ele denomina de penitenciário. Se o judiciário priva legalmente o indivíduo de sua liberdade, o penitenciário o controla e o transforma de modo exemplar (Foucault, 1975/1987, p. 208) como em nenhuma outra instituição social. No fundo, o sucesso do penitenciário se explica porque ele está enraizado na lógica mais profunda de nossas sociedades. Justamente, foi a partir da Idade Clássica que essa lógica começara, ao coincidir com o advento da Revolução industrial, com a escolarização em massa e com a emergência das ciências humanas.

O funcionamento do penitenciário é a forma concentrada de todas as instituições psiquiátricas, médicas, militares, industriais e pedagógicas do século XIX. A prisão é a imagem invertida da sociedade transformada em ameaça. No fundo, ela não é criticada porque constitui a expressão mais elevada daquilo que nessa época ocorre diariamente na fábrica, na escola, no hospital e assim por diante, e que faz parte do consenso social; mas, também, porque ela inocenta todas essas instituições de serem prisões, no sentido de que está reservada somente àqueles que cometeram uma infração, delito ou crime.

Desde o início do século XIX, a prisão tem sido uma detenção legal e um suplemento corretivo; recobriu ao mesmo tempo a privação de liberdade e a transformação técnica dos indivíduos, ao emergir como a forma mais acabada de todas as penas. O sucesso da prisão se explica não principalmente porque ela defenderia a sociedade contra aqueles que a ameaçam, mas porque as técnicas de poder ali empregadas são as mesmas daquelas presentes nas demais instituições sociais. Técnicas que caracterizam um modo peculiar de operação do poder, que é o poder disciplinar.

A NORMALIZAÇÃO DO INDIVÍDUO PELA DISCIPLINA

A disciplina é a técnica de poder que fabrica os indivíduos ao utilizar como plataforma uma anatomia política do corpo. A distribuição e repartição superficial dos corpos em um espaço determinado os tornam úteis e dóceis; mas pela docilização e otimização dos corpos visa-se à constituição de um incorporal, de uma subjetividade docilizada.

Foucault oferece ao leitor uma genealogia da alma moderna mediante a história das técnicas de poder disciplinares que atuam sobre o corpo. Adverte que esta "alma", também denominada de consciência, psique, subjetividade, jamais é uma realidade preexistente sobre a qual atuam os mecanismos punitivos; antes, somente é constituída como alma porque há um investimento político sobre o corpo (Foucault, 1975/1987, p. 29). Na fábrica, na escola, no hospital, no convento, no regimento militar ou na prisão trata-se sempre da constituição de uma anatomia política pela distribuição espacial dos indivíduos e o controle de suas atividades; ou pela combinação dos corpos e das forças, de modo a deles extrair a máxima utilidade. Ao ser o corpo parte de um espaço, núcleo de um comportamento, soma de forças que se aglutinam, torna-se possível adestrá-lo e torná-lo útil. A anatomia política do corpo fabrica pequenas individualidades funcionais e adaptadas mediante investimentos microfísicos, capilares. Daí a importância do detalhe do gesto e da minúcia do olhar.

Uma das intuições importantes apresentadas por Foucault em Vigiar e punir é a descrição dos mecanismos da microfísica do poder, uma espécie de combinação entre vigilância hierárquica e sanção normalizadora, que conflui no exame disciplinar.

A disciplina se vale da vigilância como um de seus mecanismos mais eficazes. Foucault mostra que efeitos de poder, tais como o autocontrole dos gestos e atitudes, são produzidos não somente pela violência e pela força, mas sobremaneira pela sensação de estar sendo vigiado. Engana-se quem pensa ser a sociedade disciplinar aquela na qual todos se vigiam, como se houvesse um acréscimo de guardas e disciplinadores. Pelo contrário, nas instituições de vigilância precisou-se cada vez menos desses personagens. O poder disciplinar é econômico. Ele se vale de espaços arquiteturais organizados de modo a incrementar e facilitar a sensação de vigilância múltipla, detalhada e minuciosa de cada indivíduo que compõe seus interiores. Assim é que hospitais, fábricas e escolas funcionam como microscópios do comportamento humano, ao possibilitarem a um único olhar tudo ver, permanentemente. Mas esse único olhar não necessariamente é de uma pessoa, já que o importante deixa de ser que alguém, de fato, esteja vendo. O olho anônimo do poder e sua estruturação arquitetural é que impelem o indivíduo a se autodisciplinar.

A economia do poder moderno tem na invenção do Panóptico de J. Bentham seu exemplo maior. Eis como Foucault o descreve:

na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, uma atravessando toda a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. ... O Panóptico é uma máquina de dissociar o par ver-ser visto: no anel periférico, se é totalmente visto, sem nunca ver; na torre central, vê-se tudo, sem nunca ser visto. (Foucault, 1975/1987, pp. 165-166)

A vantagem decisiva deste modelo arquitetural é a relação fictícia que ele propicia. Para constranger o condenado à boa conduta, o louco à calma, o operário ao trabalho, o aluno à aplicação e o doente à observação das ordens, deixa de ser necessário o uso da violência. Basta que estes indivíduos sejam colocados em uma arquitetura cujas separações sejam claras e as aberturas bem dispostas. A superfície de aplicação do poder se desloca então para aquele que é submetido a um campo de visibilidade. Ao imaginar estar sendo observado, o indivíduo interioriza as coerções incorporais do poder: ele se torna o princípio de sua própria objetivação.

A partir da vigilância, o poder se torna uma maquinaria múltipla, automática e anônima (Foucault, 1975/1987, p. 148). Trata-se do poder ao mesmo tempo indiscreto e discreto, pois se de um lado ele está em toda parte e sempre alerta, de outro funciona sempre em silêncio. Ele pode, ainda, ser pensado como um poder do olhar calculado, porquanto a disciplina se faz funcionar por seus próprios mecanismos. Segue-se que a vigilância hierárquica é eminentemente uma estratégia de distribuição do olhar.

Para que a vigilância hierárquica surta efeitos ela deve estar acompanhada da sanção normalizadora. Foucault não se refere aqui à punição jurídica ou sanção normativa. A norma disciplinar vai além da punição imputada ao indivíduo por ocasião de infrações, delitos e crimes cometidos; ela objetiva evitar a virtualidade de um comportamento perigoso, ao fazer uso de pequenas correções e recompensas.

A tese de Foucault é de que nas sociedades modernas a norma tem alcance maior do que a lei. Ela prevalece como aspecto fundamental das relações de poder. Enquanto a lei é exterior ao indivíduo, ao operar unicamente por ocasião da violação de um ato considerado proibido, a norma envolve o conjunto da existência humana. Ela está presente no seu cotidiano, alcança sua interioridade mediante distribuições espaciais e controles temporais das condutas. A lei é direta e teatral. A norma é difusa e indireta; ela funciona como padrão culturalmente construído a partir do qual uma multiplicidade de indivíduos é cindida por dentro, entre normais e anormais.

A esse propósito explica-se a estandardização do ensino e a criação das escolas normais no século XVIII; ou ainda a constituição de um corpo médico a fim de colocar em prática as normas gerais da saúde, a partir das quais uma coletividade é distribuída entre indivíduos saudáveis e doentes. Mas até mesmo no interior destes corpos sociais homogêneos a norma continua a atuar. Ali ela estabelece graus de normalidade ao situar cada um no seu devido lugar. Posso ser considerado normal, mas não igual aos demais normais. Ninguém é igual a qualquer outro. Além de homogeneizar, a norma individualiza, inclusive integra os prováveis desvios no interior de um mesmo grupo.

Nesse sentido é que há uma compatibilidade muito estreita entre a normalização disciplinar e a tradição democrática, posto que também nesta última há homogeneização e individualização. Formalmente, as democracias seguem o princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei, no que concerne ao respeito de direitos e garantias individuais e à exigência do cumprimento das obrigações. Mas em todos os demais aspectos da vida social predominam as diferenças individuais, muitas vezes aí incluídas as desigualdades sociais. Talvez seja a democracia das sociedades burguesas aquela que mais tem assimilado e posteriormente subsumido essas diferenças, em vista de sua própria permanência.

A vigilância e a normalização são conjugadas no exame disciplinar. Trata-se de um mecanismo de extração da verdade, exclusivo das técnicas anônimas e funcionais presentes nas diversas instituições modernas. No poder soberano, o inquérito figura como estratégia privilegiada de produção de verdade. Intensificado com a reorganização da igreja medieval e com o crescimento dos Estados principescos nos séculos XII e XIII, ele penetrou posteriormente na jurisprudência dos tribunais eclesiásticos e nas cortes leigas. Ao tomar como modelo maior a Inquisição, o inquérito fundamenta-se na pesquisa autoritária de uma verdade constatada ou atestada. Desprovidas do autoritarismo religioso, as ciências da natureza também irão fundamentar-se no inquérito como método de constatação dos fatos, de modo a melhor conhecer as coisas do mundo. A inquirição científica estará associada a essa dupla origem, a saber, a soberania monárquica e o poder religioso.

Se o inquérito torna-se uma técnica para as ciências da natureza ao desatar-se do processo inquisitorial, com o exame não ocorre o mesmo. Esse nasce com as disciplinas e permanece delas próximo. Aparentemente, o exame é purificado quando integrado na psiquiatria e na psicologia por meio de testes, entrevistas, interrogatórios, consultas e assim por diante. Na verdade, trata-se de peça intrínseca das técnicas disciplinares, na medida em que reconduz os indivíduos de uma instância disciplinar a outra e auxilia, assim, na própria reprodução do poder. A psicologia se encarrega de corrigir os rigores da escola; a entrevista médica ou psiquiátrica procura retificar os efeitos da disciplina do trabalho. O exame é capaz de reintegrar o inquérito, tal como o inquérito judicial, em uma nova dimensão. Por detrás do crime, ele introduz a problematização do criminoso; para além da punição, a preocupação com a normalização e a transformação dos indivíduos. Acima de tudo, o exame opera como mecanismo de controle e vigilância em uma ampla rede de instituições psiquiátricas, pedagógicas e médicas. Nessas instituições as condutas são classificadas pelo exame em termos de bom comportamento e rebeldia, sanidade e doença mental.

O exame funciona como modelo na produção de novos saberes, principalmente os das ciências adjetivadas de humanas. Ele transforma os indivíduos em um caso ou em uma biografia específica, de modo que sejam tornados objetos de um saber possível. Ao combinar vigilância e sanção normalizadora, o exame estuda o desenvolvimento infantil para compreender o adulto, analisa o delinquente para definir os limites do cidadão normal. Depreende-se que o adulto saudável, normal e correto, geralmente considerado sujeito pela medicina, pela moral e pelo direito, é continuamente elidido pelo seu outro, a saber: a criança, o doente, o louco, o delinquente.

Sem negar a existência e a importância do sujeito moral ou do sujeito de direito, Foucault quer mostrar que, antes, ele é uma realidade fabricada pela disciplina como tecnologia específica de poder (Foucault, 1975/1987, p. 161). Se nas sociedades modernas os indivíduos são constituídos como sujeitos a partir da técnica de poder disciplinar, torna-se difícil situar no próprio sujeito o fundamento de quaisquer normas.

Eis a primeira grande tese da genealogia posta em prática em Vigiar e punir: o indivíduo moderno é um efeito de tecnologias de poder disciplinares que se reproduzem e se legitimam a partir de saberes "humanos" determinados.

A DELINQUÊNCIA: ENTRE AS TÉCNICAS DISCIPLINARES E OS DISPOSITIVOS DE SEGURANÇA

Outra tese mais instigante, desenvolvida por Foucault nesse livro, mas que também antecipa inflexões em sua analítica do poder nos anos subsequentes, é a que se segue: as técnicas de poder disciplinares, além de extração de comportamentos por mecanismos de recompensas e punições e da constituição de saberes normalizadores centralizados no exame, produziram também uma nova economia do poder para além do sentido que demos à vigilância, figurada pelo panóptico de Bentham.

Afinal de contas, o corpo dócil, efeito das disciplinas, é o mesmo corpo útil do operário da fábrica. O controle político do corpo é acompanhado de sua maximização produtiva na economia capitalista. Não obstante, a novidade desta economia produzida pelas disciplinas não pode ser entendida somente nos quadros legais de produção e acúmulo da riqueza. Convém também situá-la nos mecanismos ilegais de utilidade produtiva e conveniência política.

Em seu livro de 1975, Foucault (1987) mostra que depois da Revolução francesa e durante o século XIX foram muito frequentes os ilegalismos políticos produzidos por lutas sociais que ameaçavam as classes políticas dirigentes. A fim de sufocá-los, seria preciso produzir outro ilegalismo que fosse economicamente lucrativo e politicamente neutro para a burguesia.

A delinquência será esse novo ilegalismo, na medida em que ela fornece quadros disponíveis para todos os circuitos do dinheiro da prostituição, do tráfico de armas e de drogas.

Nesse aspecto, o aprisionamento se apresenta como o meio mais adequado para produzir a delinquência, já que são sempre os mesmos que retornam frequentemente às mesmas celas prisionais. Nas práticas que compõem o carcerário fabrica-se a delinquência para enfraquecer as lutas políticas e sociais e potencializar o lucro ilegal das classes dirigentes de nossas sociedades democráticas e burguesas. Essa hipótese explicaria por que o fracasso da prisão na ressocialização dos indivíduos deixa de ser um efeito indesejável, já que a reincidência e a consequente circularidade da delinquência passam a ser resultados esperados.

Este mecanismo imanente de produção da delinquência no livro Vigiar e punir pareceria se opor à própria operacionalidade das disciplinas na prática carcerária, que objetivavam a produção de um indivíduo dócil e útil, resultado que poderia ser interpretado somente em termos de adestramento moral. Entretanto, a normalização disciplinar é irredutível à produção de um comportamento moralmente correto. Se esse comportamento, como o do operário padrão, é insuficiente para o acúmulo da riqueza, apela-se também para a disciplinarização da delinquência. A questão, portanto, não é eliminar a delinquência, mas normalizá-la, torná-la economicamente útil, politicamente favorável ao lucro fácil e escuso. O delinquente não seria o efeito negativo do fracasso prisional, mas o resultado positivo de uma sociedade burguesa que se alimenta da acumulação legal e ilegal do capital.

A normalização da delinquência, além de ser economicamente lucrativa e politicamente útil para neutralizar as lutas sociais, também opera como justificativa para a atuação, recorrentemente excessiva, por parte dos aparelhos de controle e regulação estatais. 

A alternância entre estar dentro e fora da prisão, inerente à reincidência, é um fator não desprezível de produção da insegurança social, a qual, por sua vez, desperta na população a demanda pelo controle policial ostensivo. Frequentemente a população pensa que o policiamento e o encarceramento são mecanismos de combate à delinquência. Raramente levam em conta que eles são mecanismos produtores da insegurança ao se valerem da normalização e regulação da delinquência para gerir e pulverizar as manifestações políticas e sociais, mas também para legitimar de fato a atuação, muitas vezes ilegal, do estado e seus aparelhos repressivos.

Grosso modo, se pelo aprisionamento se produz e se normaliza o delinquente, já quando ele retorna à sociedade passa a ser objeto de uma maneira de gerir e controlar que dele extrai proveitos econômicos e benefícios políticos. Se dentro da prisão o delinquente é fabricado pelas disciplinas, fora dela ele é governado por dispositivos de segurança.

A tese de Foucault de 1975 é a de que a circularidade da delinquência é produzida e alimentada pelas práticas prisionais. Mas somente a partir de 1978, no curso Segurança, território, população (2004), pode-se entender por que a insegurança, como um dos efeitos desta circularidade, não é aquilo contra o qual atuam os dispositivos de segurança.

A aparente dicotomia entre segurança e insegurança deixa de existir desde que Foucault entende as relações de poder em termos de governamentalidade. A partir desta chave analítica, ele novamente mostra que o Outro é constitutivo do Mesmo, que a permissividade da circulação da delinquência está na raiz da racionalização em torno dos discursos sobre a ordem pública, que a produção da insegurança é constituinte do discurso em torno das estratégias securitárias. Ao pensar assim, ele rompe com a lógica dicotômica e binária segundo a qual a ordem seria a negação da desordem, a política o término da guerra, o direito a negação da violência.

Em razão disso é que, para Foucault, era mais estratégico trabalhar o estado de polícia do que o estado de direito, privilegiar a bipolaridade entre desordem e ordem ao nível da governamentalidade do que a dicotomia entre legalidade e ilegalidade pelo olhar da racionalização jurídica e filosófica.

No curso Segurança, território, população, Foucault ilustra a gênese da governamentalidade pela metáfora grega da pilotagem. O bom comandante de uma nau é aquele que, diante das piores intempéries, consegue gerir a tripulação para chegar a um porto seguro. A esse respeito, Agamben (2008) lembra que o termo kybernés,literalmente traduzido por "governante", também é atribuído pelos gregos ao piloto de uma nau. Acrescenta ele, a prioridade nesse tipo de governo não é "determinar despoticamente os eventos", mas, pelo contrário, "deixar que os mesmos se produzam para depois orientá-los na direção mais oportuna".

Para além de Foucault, em seu livro O Reino e a glória (2011), Agamben faz um diagnóstico da teologia econômica ocidental para mostrar que a providência divina, central para a compreensão do governo divino do mundo, seria uma expressão vazia se não estivesse fundada na pressuposição do livre-arbítrio e na desordem da vontade provocados pelo seu uso indevido, no intuito de melhor geri-los. O governo divino imanente ao mundo não teria sentido sem a desordem fática produzida pelas ações pecaminosas, as quais, por sua vez, seriam impensáveis sem o livre-arbítrio.

Ressalvadas todas as suas diferenças, raciocínio similar poderia ser aplicado ao ilegalismo economicamente lucrativo, politicamente neutro e socialmente temerário, que é a delinquência: trata-se antes de governá-la,deixá-la ocorrer ao modo de ameaça para melhor regulá-la e controlá-la.

O problema é que nas sociedades atuais não somente a delinquência é regulada, mas a própria vida em seu aspecto imanente, privado, doméstico e cotidiano passou a ser gerida por uma nova economia do poder ou por uma política que se deixa determinar, quase que inteiramente, pela economia.

Trata-se da governamentalidade biopolítica, na qual a vida, outrora alheia aos domínios da política, tornou-se seu objeto principal de atuação. Em nossa sociedade observamos a assimilação cada vez maior da política por um modelo governamental economicista cujo alvo deixa de ser somente nosso ser político para se estender às demais esferas da vida privada e biológica. Não é demais lembrar uma frase de Agamben (2008) a este respeito: "onde tudo é normalizado e tudo é governável, o espaço da política tende a desaparecer".

Poderíamos dizer que a normalização e regulação da delinquência a serviço de uma nova economia do poder ou, de modo mais abrangente, a vida, governada cada vez mais por critérios economicistas, visam a obscurecer o espaço da política como mediadora de conflitos, ao mesmo tempo em que recriam uma nova maneira de governar.

Os dispositivos de segurança e a reconfiguração que eles realizam das tecnologias disciplinares são racionalidades que operam em estados democráticos cada vez mais governamentalizados por uma nova economia do poder, embora filosoficamente eles permaneçam legitimados por valores éticos universais e juridicamente se valham da neutralidade da política em relação a qualquer modalidade de interesse econômico.

Agradecimento
Ao CNPq e à Fundação Araucária (PR) pelo auxílio recebido.

Referências
Agamben, G. (2008). Democracia e pós-ideologia se elidem. Entrevista com Giorgio Agamben. IHU Online. São Leopoldo. Acesso em 11 de fevereiro, 2012, em http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/12818-democracia-e-pos-ideologia-se-elidem-entrevista-com-giorgio-agamben        [ Links ]
Agamben, G. (2011). O Reino e a Glória. Uma genealogia teológica da economia e do governo. Homo Sacer II (S. J. Assmann, Trad.). São Paulo: Boitempo.         [ Links ]
Foucault, M. (1987). Vigiar e punir. Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1975)        [ Links ]
Foucault, M. (2004). Sécurité, territoire, population. Cours au Collège de France,1977-1978. Édition établie par François Ewald et Alessandro Fontana, par Michel Senellart. Paris: Gallimard/Seuil (Coll. Hautes études). 


> Artigo publicado originalmente na Revista Psicologia & Sociedade da UFMG.