sexta-feira, 30 de março de 2012

O QUE AMAS DE VERDADE PERMANECE - Ezra Pound

O que amas de verdade permanece,
O resto é escória
O que amas de verdade não te será arrancado
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
Mundo de quem, meu ou deles
ou não é de ninguém?
Veio o visível primeiro, depois o palpável
Elísio, ainda que fosse nas câmaras do inferno,
O que amas de verdade é tua herança verdadeira
O que amas de verdade não te será arrancado
A formiga é um centauro em seu mundo de dragões.
Abaixo tua vaidade, nem coragem
Nem ordem, nem graça são obras do homem,
Abaixo tua vaidade, eu digo abaixo!
Aprende com o mundo verde o teu lugar
Na escala da invenção ou arte verdadeira,
Abaixo tua vaidade,
Paquin, abaixo!
O elmo verde superou tua elegância.
“Domina-te e os outros te suportarão”
Abaixo tua vaidade
Tu és um cão surrado e largado ao granizo,
Uma pega inchada sob um sol instável,
Metade branca, metade negra
E confundes a asa com a cauda
Abaixo tua vaidade
Que mesquinhos teus ódios
Nutridos na mentira,
Abaixo tua vaidade,
Ávidos em destruir, avaro em caridade,
Abaixo tua vaidade,
Eu digo abaixo.
Mas ter feito em lugar de não fazer
isto não é vaidade
Ter, com decência, batido
Para que um blunt abrisse
Ter colhido no ar a tradição mais viva
Ou num belo olho antigo a flama inconquistada
Isto não é vaidade.
Aqui, o erro todo consiste em não ter feito.
Todo: na timidez que vacilou.




REFERÊNCIA
POUND, Ezra. Poesia. (Introdução, organização e notas de Augusto de Campos; traduções de Augusto dos Campos… [et al.]; textos críticos de Haroldo de Campos). São Paulo: HUCITEC; Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1993.

quarta-feira, 28 de março de 2012

TÃO ACRE: AS INESQUECÍVEIS DO ZÉ LEITE

DUPLICIDADE
Jorge Hadad, o popular Jorgito de Xapuri, era vereador. Más línguas da cidade cívica, que também atende por “Princesinha”, espalharam que dois projetos de sua autoria rocambolescamente fizeram sucesso:
Primeiro: Solicitação ao prefeito para construir dois parques infantis, um para adultos e outro para crianças.
Segundo: Pedido ao Governo do Estado para doar um casal de touros para servir de reprodutores e incrementar a pecuária de Xapuri.


O PREFEITO EXIGENTE
O prefeito de Brasiléia, Elson Dias Dantas, hoje na paz do Senhor, decidiu em 1972 comemorar mais um aniversário do município em alto estilo. Queria os festejos de 3 de julho joeirados e grandiloquentes, principalmente no setor esportivo. Contratou um técnico para preparar o time de futebol de salão, sem medir despesas, afinal o quadrangular teria time de Rio Branco, Cobija e Xapuri.
 Encontra o técnico (da capital), trava diálogo:
 – Então, seu técnico, como vai a turma? Está indo bem?
 – Excelência, vai assim, assim. Falta só o entrosamento.
 Elson Dantas, imperioso e generoso, jogou duro:
 – Pois mande buscá-lo, homem! Pago gratificação, mesa, cama, luz, roupa lavada, só não admito é que por falta do Entrosamento Brasiléia faça feio dia 3 de julho.

TESTE DO ALUÍSIO
Secretário de Segurança Pública, no Governo Jorge Kalume (1966-1970), o deputado Aluísio Queiroz vivia de olho em dois policiais nós cegos, por ele suspeitos de fãs do sétimo mandamento de Moisés. Recebendo uma denúncia de triteragem da dupla, mandou chamar os tiras e no interrogatório quis saber o que andavam fazendo. Como um lhe jurou ter passado a noite anterior correndo atrás de um ladrão, Queiroz, aproveitando o momento adequado, arrematou:
 – Ah, foi? Pois então fiquem aqui agora um correndo atrás do outro.

---

REFERÊNCIA
LEITE, José Chalub. Tão Acre: Humor acreano de todos os tempos. Rio Branco: BOGRAF/Editora Preview Ltda, 2000.

José Chalub Leite (1939-1998) foi um dos maiores nomes do jornalismo acreano. Trabalhou em diversos jornais (Tribuna do Povo, O Estado do Acre, O Rio Branco, etc), fundou com outros a Associação dos Cronistas Esportivos do Acre, a Associação Profissional dos Jornalistas do Acre, a Federação de Pugilismo. Zé Leite, como era popularmente conhecido, legou para o Acre uma das mais belas páginas do humor jornalístico acreano.

segunda-feira, 26 de março de 2012

SOBRE PIOLHOS, PÓ DE GIRAFA E AMENIDADES - Leila Jalul

No sábado, dia 17, tentando umas manobras radicais, saí de casa para um banho de piscina e um almoço em família. Não sou acostumada a almoços em família. É muita pressão! É tudo muito cheio de segundas, terceiras e quartas intenções.

Para não bancar a Dona Encrenca, fiz uma galinha caipira fake, e fui, cheia de má vontade. Família, no dizer de alguém, é um tipo de partido ao qual você nasce filiado e sem direito a ficha de desfiliação. Fui bem comportada, mas... Deu o maior bode.

Piscinas, para velhos tronchos, inseguros e deformados, que nem eu sou, deveriam ser almofadadas, antiderrapantes, rasas e sem escadarias, de preferência. Diriam vocês que isso não seria piscina, nem banheira, e sim um tanquinho de molhar e refrescar a bunda. Tem nada demais se pensarem assim. Não fico ofendida ou magoada. Tartarugas nunca ficam ofendidas, está me ouvindo, Genaro? Borboletas e sapinhas, sim!

Pois bem, acompanhada por um parente, não quis descer para a água sem que antes ficasse segura. Tentei ficar de joelhos, sentar no chão da borda, sentir firmeza nas pernas e descer a passos de tartaruga. De mansinho... EU SOU UMA TARTARUGA! Descobri isto no sábado.

Final de papo: após uma fisgada no joelho, senti o drama, apoiei o corpo com a mão e pé direitos e... Lasquei-me inteirinha. Fiz uma luxação de grau 3 (depois do Idílios perigosos, por imitação, resolvi pontuar todas as minhas dores e sentimentos). Meu pé está com as mesmas cores da tinta do jenipapo e da casca de nogueira: roxim, roxim; quase pretim, pretim!

Em desespero, chamei minha Flor de Lys.

- Luzinete, minha nega, venha pra cá. Está só ou mal acompanhada?

- Estou com Deus, patroinha. À sua disposição e doida para atualizar nossas conversas. Vou de táxi?

- Não, venha de jegue que demora menos, estou com a razão?

- Tô chegando!

Não deu uma hora e Luzinete buzinou o interfone, discretamente e de forma delicada e suave. Genaro, que até pode dar uns coices de vez em quando, é mais sutil, tenham certeza! Levantei-me, usei a cadeira de rodinhas do computador como se fosse um andador e abri a porta. Na velocidade das tartarugas. Ufa!

- Diga lá, minha santa! Estarei enganada ou a senhora só se “alembra” de mim na hora do desespero?

- Luzinete, há pessoas que são tão marcantes que, por mais que se queira, é impossível esquecê-las. São como tatuagens na alma. São pessoas especiais, tais como as sandálias havaianas que não soltam as tiras e nem perdem as cores (uma grande mentira!!!). Já jantou?

- Não se avexe! Fique quieta e deixe que me acerto na cozinha. Trepe as pernas, dondoca! Posso fazer um virado. Com ovos e boa vontade, minha preta, a gente se vira no virado, né?

- Né, Luzinete. Vamos botar os assuntos em dia.

- Dona Leila, a senhora já teve piolho?

- Na infância, com certeza, tive. Não consigo lembrar, mas devo ter sido apinhada deles. Suor, calor e cabelos mal lavados... Cabeça suja é o habitat natural dos pestinhas, não?

- Mana velha, pelas misericórdias, peguei uma piolhada do defunto meu primo. Venho lutando, lutando e não dou cabo neles. Dizem que piolho de defunto resiste até que, quem pegou, abotoe o paletó. Já ouviu falar nisso?

- Não. Nunca ouvi falar. O que os cientistas dizem é que há solução para eles: caseira e medicamentosa. Há pessoas que usam vinagre e mel de abelha. Os bichinhos sentem o azedo do vinagre, correm para o mel e nele ficam colados. Você tentou algum? Nas farmácias tem o Neocid, um pozinho dentro de uma lata e com um buraquinho. A gente aperta a lata e o pozinho cai no couro cabeludo. É tiro e queda! Os gordinhos ficam embebedados e desmaiam no travesseiro. De manhã, ao acordar, você coloca os bebuns sobre a unha do dedo grandão e, com a do outra, “poca” eles. Faz um barulhinho lindo! Faça isso, criatura!

- Quero não. Minha mãe falou que só se mata piolho de defunto, em definitivo, se colocar o Pó de Girafa. A senhora conhece?

- Não. Girafa nem tem cabelo, criatura! Que conversa é essa de pó de girafa?

- Tudo bem. Vou achar, comprar e matar essa “pragaiada” de defunto que está querendo foder minha vida. É tudo inveja! Agora que meus cabelos estão crescendo... Vou devolver a praga, tenha fé! Vamos mudar de assunto?

Luzinete quis abordar assuntos de Brasília, iniciando sobre o homem que não sabe enfiar a minhoca no anzol. E eu, que nem sempre me imiscuo nos assuntos daquela parafernália indigesta, preferi que falássemos de outras amenidades. Meu pé doía a cântaros e minha alma chorava lágrimas de sangue! Quereria derreter meu baço? Nem morta!

Nisso, quando estávamos decidindo na “porrinha” o assunto a ser tratado, aparece na televisão uma matéria sobre um pastor evangélico-fazendeiro, supostamente acusado de ser ladrão, safado, explorador da fé e da burrice, catrepeiro e detentor de todos os adjetivos desqualificativos que se possa imaginar. Vi e ouvi a matéria. Logo descobri que se tratava de um sujo falando de um mal lavado. As moralidades dos donos das duas igrejas que se acusam, em nada, nadica de nada, diferem. É sabido que “ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão”, mas, no caso, são pessoas que, segundo dizem, enganam inocentes. Milhares de inocentes, diga-se! Milhares e milhares de incautos e cegos que fazem da fé suas muletas. Desnorteados e aflitos que entregam suas vidas, almas e bens nas mãos de dirigentes de ministérios inidôneos e já bem conhecidos por suas obras mirabolantes com o dinheiro alheio.

- Luzinete, esse assunto também não é legal. Prefiro piolhos de defuntos a vermes de bandidos vivos. Muda o canal, vai!

- Pronto, a dama de lilás resolveu aloprar. Vamos logo jantar. Virado bom, que desce redondo, é virado quente. Fritei um pouco de bacon, desfiei a sobra da carne de carneiro, tasquei cebola, cebolinha e coentro, mexi no jeito, acrescentei caroços de feijão, umas duas colheradas de arroz, um colherão de manteiga, quatro ovos e, depois de dar uma rebolada em tudo, tasquei farinha e queijo ralado. Tá bom?

- Quantas pessoas vão jantar? Essa panelada dá pra dez pessoas.

- O que sobrar, creia, não irá para o lixo. Vai ser o almoço de amanhã. Meu virado tem prazo largo! Amanhã a gente coloca azeitona e ervilha. Quer mais?

Luzinete, enquanto falava e jantava, coçava a cabeça. Entre um garfo e outro, os anopluras de seis pernas causavam comichão e ela, instintivamente, metia as unhas na pensante infestada, “cavucando” sem parar o couro cabeludo. Aquilo sacudiu meus nervos. Veio-me à mente um defuntinho que vi na infância, no primeiro contato que tive com a morte. Tadeu Jr., o filho do Tenente Tadeu, lascado de vermes e piolhos, se transformou numa imagem escabrosa e que trago gravada de forma indelével. Bem fazia minha avó em obrigar todos os netos a, semestralmente, ingerir uma talagada de Tiro Seguro e, como complemento, um vidro de óleo de fígado de bacalhau – a famosíssima Emulsão de Scott. O ruim é bom, dizia ela. Nenhum de nós morreu e teve lombrigas saindo pelos ouvidos, bocas e narinas. A mulher do sargento era burra demais e, ainda que morasse na cidade, nem um licorzinho de cacau Xavier deu para o Tadeuzinho. Que tristeza! Tadeuzinho morto e os bichos vivos perambulando sobre suas vestes claras e inocentes.

Por gostar de Luzinete, de verdade, jamais pensaria vê-la repetindo a estória de Tadeuzinho. Para despistar e não ser agressiva. Perguntei:

- Luzinete, você fez o Papa Nicolau e a mamografia este ano? Se não fez, trate de fazer, visse? Amanhã de manhã, sem falta, vou ligar para a Drogaria São Paulo em busca do Pó de Girafa, ok? Você só vai para casa depois de acabar com os piolhos do defunto.

Se não acharmos o Pó de Girafa, vai ser com Neocid, DDT dos soldados da malária ou com Detefon. Vai ser com sabonete de Escabiol, pente fino, vinagre, mel de abelha e tudo o que estiver à nossa disposição. Em casa ou na farmácia, visse? Não vai sobrar pedra sobre pedra e nem piolho sobre piolho. As lêndeas não vão mais parir. Acabaremos com a fertilidade delas numa sessão de extermínio à minha moda. Em uma semana, se não houver uma solução, cortaremos teu cabelo. E tenho dito! Vai confiar em mim?

- Primeiro vamos achar o Pó de Girafa, legal?

Assim prometi, assim fiz. O homem da Drogaria São Paulo, quando falei no Pó de Girafa, deu a maior risada na minha cara.

- Senhora, se esse remédio existiu, foi em l830. A senhora está certa disso? Em que ano a senhora nasceu?

- Vá se lascar e pare de rir! O Pó de Girafa existe! Você é muito novo ou muito babaca. Deixe! Vou procurar noutras farmácias e drogarias, seu besta! Seu babacão! Vou passar um e-mail para uma amiga e contemporânea, para saber do Pó de Girafa. Bye, moleque!

- Mil desculpas, senhora.

No domingo, dia 18, o entregador da Farmácia Arpoador chegou com uma lata de Neocid, uma emulsão para piolhos, um pente fino e um condicionador para cabelos secos e rebeldes. Eu e Luzinete, sentadas na área de serviço, iniciamos a operação cata piolhos e fura-bolos. Tudo como mandava o figurino das antigas. A sessão durou hora e meia de relógio. No final de tudo, também como mandava o figurino de mamãe, entrelacei fios de linha de costurar no pente fino. Esse era o procedimento adequado para a fase de retirada das lêndeas. Elas saíam aos montes... Credo

Agradecer Luzinete pelos bons serviços prestados, pela companhia e pelo virado, não era mais que a minha obrigação. Sou uma tartaruga cristã! Piolho não dá em postes, ora pois!

Hoje, 23 de março, quando escrevo, Luzinete já se foi. Saiu daqui com cabelos limpos e sedosos. Sem lêndeas e sem piolhos. Cheia de graça, diga-se! Espero que não haja recaída. De minha parte, embora tudo tenha sido feito com cuidado, estou alerta para qualquer sinal de coceira nos meus sedosos. Até agora...

Depois ficar quebrando a cabeça, salvo engano, lembrei que, há muito tempo, e bote tempo, existia um pesticida de nome Orval ou Torval, que tinha uma girafa na embalagem.

Enquanto isso, sem ficar ligada em Brasília e seus desencantos administrativos, vou assistir o deslanchar da briga entre os pastores acusados de ladroagem. Haja Prinachol!

---

*Texto originalmente publicado no site Lima Coelho.

sábado, 24 de março de 2012

SER DEPUTADO SEM SER VOTADO - José Augusto de Castro e Costa*

A reforma política é, indubitavelmente, uma das mais importantes revisões estruturais a ser levada a efeito no país. Isto porque é a política não apenas uma atividade para alcançar determinados objetivos de grupos ou resolver conflitos, mas para acolher de diversas outras fontes uma multiplicidade de interesses da sociedade. Nela reside a ciência concernente ao Estado, aos negócios públicos, ao ambiente público, aos meios, ao comércio, à indústria, às rendas, à economia, ao ensino, ao sistema monetário, à história, à geografia e à geopolítica (ao povo, às terras, aos rios, à flora, à fauna, à área marítima, ao espaço aéreo). É, por conseguinte, uma atividade vital na qual devem abrigar-se a esperança e os anseios de uma nação. É da política que são esperadas as devidas providências para o equilíbrio, a sobrevivência e a dignidade da pátria.
Alegoria juramento constituição 1824

A história da política brasileira chega a ser, sim, ao mesmo tempo, algo preocupante e bizarro em alguns aspectos. Para não fugir à “regra” de que em todas as histórias há controvérsias, na história da política do Brasil também há. Por tratar-se de um país novo, influenciado por culturas extrínsecas, muitos atos do nosso comportamento político têm mais de uma versão, sobressaindo-se, sempre, a mais vantajosa ou pelo menos a mais aceitável, conduta que parece ser remanescente de nossos colonizadores.

Sobre a Independência do Brasil, segundo o padre Belchior Pinheiro de Oliveira, testemunha ocular da cena, o Imperador D. Pedro I jamais proferiu a célebre expressão“ Independência ou Morte”. Na verdade, segundo o padre, o príncipe recebeu a tal correspondência vinda de Lisboa com exigências para ele inaceitáveis.
Ao tomar ciência do conteúdo, atirou os papéis no chão e os pisoteou. Em seguida disse ao padre Belchior: “Nada mais quero do governo português e proclamo o Brasil para sempre separado de Portugal. Pelo meu sangue, pela minha honra, pelo meu Deus, juro fazer a liberdade do Brasil”.

Brota daí a política brasileira, com vistas à primeira Constituição, onde mentes férteis começaram a arquitetar vantagens próprias, visando interesses pessoais em detrimento aos do país, condicionando, anos depois, a democracia habilitar as maiorias a concretizarem esses interesses. E vemos, a partir de então, nossa história política robustecer-se com fatos mirabolantes que vão da “lei do dedo sujo” a “curral”, “cabresto”, “boto tucuxi”, “fósforo”, etc. etc.
Proclamação da República,
por Henrique Bernardelli.
Lembremo-nos de que o feito da Proclamação da República pode muito bem enquadrar-se em graciosamente original: um Comandante é levado à presença da tropa para sugerir, pessoalmente, uma revolta militar contra o Governo. Em seguida é-lhe trazido em cavalo no qual, ao montá-lo, profere a frase inaudível “Viva a República”. Apea-se do cavalo e retorna à sua residência para, por ser asmático, recuperar-se de uma crise de dispneia. Os demais republicanos (oficiais e civis), em seguida, encarregam-se das providências a serem tomadas.

Revendo-se as regras eleitorais brasileiras deparamo-nos com questões complicadíssimas, quais sejam as referentes ao coeficiente eleitoral e ao voto proporcional, tal qual ocorreu em 2002, quando um pequenino partido – PRONA – elegeu cinco deputados com os 1.573.112 votos de um só candidato, Enéas Carneiro, acreano de nascimento.

Em 1945 ocorreu um fato, talvez o primeiro de consequências esquisitas, semelhante ao de 2002. O político Hermelindo Castelo Branco foi eleito deputado federal pelo então Território do Acre de forma totalmente ignorada pelos eleitores, porém, perfeitamente constitucional.

Nem ele pode votar em si mesmo, uma vez que à época encontrava-se viajando pelo Rio de Janeiro. Contudo, elegeu-se na cola de um colega de partido (PSD), Hugo Ribeiro Carneiro, que obteve mais de 70% dos votos válidos.

Como só havia duas vagas e o partido conquistou mais da metade do eleitorado, teve direito a eleger dois candidatos – e Hermelindo Castelo Branco ganhou a cadeira com a sensacional votação de nenhum voto.

São casos como esse que podem acontecer no sistema proporcional. Se um candidato já tem votos suficientes para eleger-se, a sobra vai para outros candidatos de seu partido.

Por ser complexo, o tema referente à Reforma Política ainda não chegou a um consenso por parte dos legisladores, que com seus partidos dividem-se diante das propostas apresentadas. Daí o motivo das agendas para votação da matéria serem constantemente adiadas, como aconteceu recentemente.

---

*José Augusto de Castro e Costa é poeta e cronista acreano. Reside em Brasília e escreve regularmente para o Jornal Página 20. Escreve também em seu blog FELICIDACRE.

quinta-feira, 22 de março de 2012

OS CANTARES SERINGUEIROS - Amancio Leite


Eu sou seringueiro
            no rio Juruá,
Do meu Ceará
            vivo distante!
Sempre a trabalhar
            p’ra arranjar um saldo
Que tempere o caldo
            D’um escravo errante...

Todos os trabalhos
            duros, desta terra,
Em constante guerra
            são por mim vencidos...
Cá nas solidões
            cheias de maldades,
Tenho mil saudades,
dos meus pais queridos!

Mas, confio em Deus
            nosso Pai bondoso
Que serei ditoso...
            – Bem ditoso ainda! –
De voltar com saldo
            ao torrão amado
E inda ser casado
            C’o u’a moça linda...

Tal sonho dourado
            é o que eu aturo,
Penso no futuro
            se é como o presente...
Devo mais d’um conto,
            meu patrão não presta...
Já nos franze a testa
            bota-se a valente...

Que fazer? Sou preso
            na cadeia imensa
Desta mata extensa
            que já não tem fim...
Lá na minha terra
            o caso é mudado,
E o mundo é furado...
            não trancado assim!

Basta de lamentos,
            confiar em Deus,
Que os penares meus
            serão descontados;
Quando lá na Pátria
            onde fui nascido,
Farei-me esquecido
            Deste cru passado!

Este belo assunto,
            esta narração,
Vai contar então
            como se trabalha;
Como se fabrica
            essa tal borracha
Que desfaz a taxa
            de qualquer canalha...

Cá nos ermos tristes
             por onde eu trabalho,
É meu agasalho
            pequena choupana.
Em derredor dela,
            verdes, cresce em brilho,
Vinte pés de milho,
            cinco ou seis de cana.

Também tem a um lado
            grande samaumeiras
Bela e sobranceira,
            sobre a verde mata...
Atrás da cozinha
            vê-se a fumaceira
Junto a uma touceira
            de banana prata.

Em Abril ou Maio
            Saio ao barracão
É grosso o pancão...
            me empelho dez dias...
Quando volto ao centro
            eu, e mais pessoas,
A remar canoas
            com mercadorias...

Finda a viagem
            muito perigosa...
Muito trabalhosa...
            chego em certo porto
Onde desembarco
            minha aviação...
Gemo como um cão:
            “de remar estou morto!”

Mas, que importa isto?...
            amanhã eu entro
Para meu longe centro...
            – carga sobre a costa –
Sigo pensativo,
            transpondo ladeiras
– Dessas brincadeiras
            pouca gente gosta! –

Meio dia andando
            para o rancho querido,
Chego bem moido...
            enervado e teso!
No fim do soalho
            boto a carga abaixo,
Nisto, livre me acho
            do enfadonho peso...

Tiro a blusa fora,
            corro o meu roçado,
Vejo prosperado
            todo o meu legume
Volto para a barraca
            cheio de prazer
Trato de fazer
            logo fogo ao “lume”.

Vejo se tem pó,
            vou fazer café;
Antes um chibé
            tomo por primeiro:
Eis um alimento
            muito apreciado
Pelo degredado
            triste seringueiro!

Em seguida ao “moka”
fumo o meu cigarro;
E a barraca varro;
            – Pois “gunverno” ali... –
Uso – por vassoura –
            também – por capacho –
O pendão dum cacho
            chocho de açaí...

Desembalo a carga,
            vou tomar um banho;
Que calor tamanho
            aqui nos flagela!
De roupa mudada
            fico mais bonito...
De café repito
            logo outra tigela...

Compõe-se a barraca
            – de dois seringueiros –
De dois mosquiteiros
            metidos nas redes!
Tosca choupaninha
            muito bem coberta...
Quase sempre aberta...
            não possui paredes. –

Facas com bainhas!
            O rifle e espingarda
Se azeita e se guarda
            zelados polidos...
Em contraste a isso
            vê-se dois terçados,
Muito enferrujados
            na palha metidos.

A mesa de jantar...
            – de couro de veado –
Está ali pendurado,
            juntinho à toalha...
Ou quando não este,
nota-se uma esteira
D’olho da palmeira,
bem trançada a palha.

Deitado ao soalho
            meu machado “tumba”
Dentro dum zabumba
            da paxiubeira,
Meu pequeno pote
            cheio d’água fria
Mesmo ao meio dia
            Sempre foi geleira...

Todos os artigos
            de necessidade,
Eu, mais meu “cumpade”
            Zeca Ciríaco,
Vamos transportando
            pra nossa choupana
Nos confins de semana
            Cada um com um saco.

Eu, na minha terra
            nunca levei murro...
Mas aqui, sou burro!
            – me virei em bicho!...
Pois meu jamaxi
            com a sua testeira,
Dá-me a fucinheira...
            só falta o rabicho!
Da barraca grande
            meu leitor já sabe,
Portanto, nos cabe
            seguir outra linha:
Desça dois degraus
            – com muita cautela –
Vamos à panela
            que está na cozinha.

Ei-la sobre a trempe;
            ferve com macaco.
“Cumpade Ciríaco”
            não come feijão:
Já eu, como tudo...
            não reservo nada...
Pra mim, lesma assada
            – faz de requeijão!

Vou lá ter vontade!...
            nesta sepultura...
Como até mucura...
            – só não como é cru! –
“Deixei” de ser onça...
            Pra andar com “manobra”.
Só não como é cobra
            mais mestre urubu!

Mas, o comprimento
            deste humilde canto
Já secou meu pranto
            já meu deu o riso...
Meu leitor amigo
            como tu não dormes
Mais alguns informes
            nos serão precisos...

Queira acompanhar-me
            dez ou doze passos:
– Sem cruzar os braços –
            “sem pisar no chão...”
Minha fumaceira,
            Meu defumador
– Feito com rigor –
            não é longe, não.

Ele é pequenino
            “mas-porém” é rico,
Meu vizinho Chico
            não tem um assim!
Cabra preguiçoso...
            cabra sapupema
Sempre foi panema
            seringueiro ruim!

Eu já lhe avisei
            que tenha cuidado
Se não “enrolado”
            vai ser qualquer dia...
O “cabra é toqueiro”
            porém, não escapa,
Lhe enrolo na capa,
            de minha bacia!

No Chico Calangro
            Mais Joaquim Caçote,
Vou passar capote
            quer queiram quer não.
Eles dois não “drôme”
            Toda a noite é pouca...
Os passos na boca
            deste meu “boião”!

Minha fumaceira
            de palha jaci,
Ou ouricuri,
            com caibros no chão.
Pra esbarrar o vento
            se tapa em “redó”:
Tem uma porta só
            e no centro o boião.

Tornos da bacia
            fincados com jeito
Ao lado direito
            ao alcance da mão...
Grade, prancha e cuia,
            cavador, sarilhos,
Eis os “atencilhos”
            da difumação.

Depois disto dito,
            nós vamos à estrada,
Que já está roçada,
            que entigelo e sangro.
Ela dá dez frascos,
            a menor dá oito...
Desafio afoito,
            Chico de Calangro!

Ele tem um “rosso”!
            este meu vizinho
Pelo machadinho
            Julga-se pesado!
Vou dar-lhe uma “marcha”
            de bicho turuna...
Que ele se “arripuna”
            para andar calado!

Só não desafio
            Zeca Papagaio,
Pois começa em Maio
            e não perde um dia!
Corta sete meses
            pesa mil e tantos
– Tem por ele, os santos
            e a Virgem Maria...

Ou então é “pauta”
            com o “cabra-velho”!
Que criou chavelho
            em lugar de cr’ao!
Credo! Ave Maria!
            “qui cabôco” frouxo!
Para o “vei-cão cocho”!
            tem sua alma boa!

Bonito é o regímen
            dum bom seringueiro;
Ele e o companheiro
            – marcam certo a hora –
Desprezando as redes
            e o prazer do sono;
São dois cães sem dono...
            Partem, vão se embora.

Sucessivamente,
            tal se dá comigo:
Essa regra eu sigo
            com prazer e amor!
Madrugada cedo
            sou atormentado
Pelo cão danado –
            do despertador!

Este “galo-disco”
            das tripas de ferro,
Quando solta o berro
            não quer mais parar...
Me espreguiço e benzo,
            me levanto logo,
Vou fazer o fogo...
            trato de almoçar...
Um café de frasco,
            preto como tinta.
Cuja borra pinta
            dentro da tigela
Uma catacumba,
            um navio, ou barca,
Uma igreja, ou arca
            mausoléu, capela...

Eu e meu amigo
            caro companheiro,
Bravo seringueiro,
            chamado José,
“Embocamos” tudo
            – com prazer, sem luxo –
Para a “pá” do buxo
            carnes e café!

Terminada a “bóia”
            meu cachimbo fumo,
Cada qual, seu rumo
            parte diligente;
Chega na madeira,
            corta, e com cautela
Embute as tigelas
            segue novamente...
Neste desempenho,
            de cachimbo ao queixo,
Balde e saco deixo
            onde se bifurca
Minha extensa estrada
            tão cheia de dobras...
Onde sobre conras
            já dancei mazurka!

Nesses labirintos
            ou montanhas Russas,
Faço escaramuças
            na função do corte.
Posto, que cansado,
            não me sinto fraco!
Já nalgum macaco
            tenho dado a morte...

Finalmente, alcanço
            esse entroncamento
Que o povo – “Zé-Bento”
            – cá da minha laia –
Findamos o corte,
            chamamos de “feixo”,
Onde o balde deixo
            mal a aurora raia.

Lá me vou de novo
            pelo “labirinto”...
Já cansadas sinto
            Minhas fortes pernas...
Infeliz da mãe
            desse visionário
Que transpõe diário
            mais de cem cavernas!

Pelas duas horas
            chego na barraca,
Boto abaixo a maca
            vou tomar café.
Como alguma cousa
            pá forrar o peito:
Isso já tem feito
            meu cumpade Zé!

Acendo o cachimbo
            “e o meu leite aqueço”:
Logo no começo
            defumo um sapato:
Eis nosso calçado
            que aqui se gasta.
Só um par não basta
            para a estrada e o mato!

E a borracha rola
            sobre este cachimbo
Que vomita um nimbo
            lambiscando o teto.
Petrifico o leite
            da colheira diurna,
Dentro dessa furna
            própria dum inseto...

E a borracha cresce
            sucessivamente,
Na fumaça quente,
            crosta sobre crosta:
Vai avolumando
            qual balão tufado.
“Fico azucrinado”
            “quando a bixa tosta”!

Passo duas horas
            bem atarefado
Nesse humilde fado,
 mas, apetecido!
Pois, borracha é chave
            que destranca a porta
Dessa via torta
            do torrão querido!

Finalmente acabo:
            sobre a tábua lisa
Rebolo a camisa
            do bolão de oitenta...
Ponha a marca de ferro.
            (nos cobres me monto!)
Dívida dum conto?...
            comigo não aguenta...

Saco a blusa fora
            (tenho o corpo quente)
Assovio contente
            polkas, walsas, “chotes”,
Preparando a “bóia”
            penso nos vizinhos
Ambos, – coitadinhos –
            estão nos meus capotes!

Me sinto contente
            pelo dia ganho,
Vou tomar meu banho
            pra poder jantar.
E depois que janto
            deito na maqueira
Pra desta maneira
            eu poder cantar:

“Sou bom seringueiro,
            – mas não sou poeta! –
Minha predileta
            é a seringueira...
Vivo tão distante!
            Triste e degredado
Do meu berço amado
            “Maria Pereira!”

Repito de novo
            vivo desterrado,
Errante e isolado
            nesta zona infinda...
Mas espero em Deus
            que inda voltarei,
E me casarei
            com u’a moça linda!

*
* *

Agora leitor
            – da classe letrada –
Tu leste a “embolada”
            do meu cantador?...
De certo que sim:
            pois bem, foi verdade…
Cá na majestade
            das selvas sem fim
Também tem quem cante...
            (Natos trovadores)
Também tem atores...
            – Não vês o japiim?!

* *
*

(Melhorado: 1930).


REFERÊNCIA
LIMA, Francisco Peres de. Folk-lore Acreano. Rio de Janeiro: Brasília Editora-Rio, 1938.


SOBRE O AUTOR.: Amâncio Leite, um cearense acreanizado, viveu em Cruzeiro do Sul, no Vale do Juruá, Acre, no início do século XX. Foi seringueiro e um exímio poeta regionalista. Sua poesia desvela a vida dos seringueiros e seus anseios no seio da floresta amazônica. De sua autoria tem-se registro de um livro intitulado “Os cantares seringueiros” que veio a lume por volta do ano de 1930, dos quais sabe-se da existência de raros exemplares.